Jornada Humus, um compilado

Era o encontro de final de ano da Sicredi Caminho das Águas, Sicredi que já fazia parte da minha vida por mais de 27 anos. Nesta cooperativa completava neste momento, dezembro de 2021, 15 anos, que renderam muita experiência, uma coleção de histórias de superação e a fase mais definitiva e importante da minha carreira, que me levou neste período a condição de diretor executivo, cargo almejado por muitos e quase o topo da carreira de quem trabalha nesta instituição. Já liderará e organizará, junto com as minhas equipes, diversos seminários como este. Porém o de hoje era especial, pois seria o último como colaborador desta empresa da qual tinha uma relação de amor e ódio. Eu sabia que haveriam homenagens, e já desde o seu início, com a fala do presidente, entendi que o que queriam ter feito já havia passado. E este momento foi emocionante. Porém nada havia me preparado para as homenagens surpresas, onde um coquetel de incríveis ações foi feito, entre elas, a leitura de uma linda biografia que remetia a fatos da minha infância, referências da minha juventude, o encontro com a Adelaide e a vinda dos meus filhos, bem como o forte desejo de conhecer o mundo. A entrada surpresa de minha família me desmontou emocionalmente e não tive como conter as lágrimas. Estava agora sim, definitivamente encerrando um ciclo de 27 anos, abrindo mão de uma carreira, de uma ótima remuneração, de saborear a vitória de um trabalho de resgate de uma empresa falida quando iniciei, e do status de uma posição desejada por muitos, e em um trabalho que amava. E tudo isso com 50 anos idade, sem estar ainda aposentado, abrindo mão de carreira, entregando de mão beijada para meu sucessor um legado de trabalho e realização que agora poderia usufruir. E porque tudo isso?

Vamos retroceder esta fita até os anos 2007. 

Neste ano, após acampar de barraca, por muitos anos com a minha parceria Adelaide, pratica que herdei por influência de meus pais, e com uma estrutura montada para poder ser utilizada no camping Lagoa Mar de Garopaba, SC, o desejo de explorar o mundo surge forte, especialmente pelas leituras de livros de grandes exploradores, entre eles a família Schurmann e Amyr Klink, velejadores. Estávamos cansados de todos os anos nas férias que não ultrapassavam 15 dias, ir para o mesmo destino, que a propósito, eram dias deliciosos. Nestes diversos anos de Lagoa Mar e Garopaba, colecionamos lindas e queridas memórias.  Mas junto com esta vontade, a constatação, que velejar estava longe de nossas possibilidades. Então vieram livros de motociclistas, em especial o gaúcho Chardô, o Casal Catarinense Rauen e outros tantos. Estava decidido!!! Iniciaríamos nossa vida de viagens e aventuras com uma motocicleta. Entendíamos que este meio seria o mais adequado para o nosso atual nível de capacidade financeira. Entendemos que nela havia um ótimo custo benefício. Entusiasmados começamos a sonhar com viagens de moto. Porém havia um "pequeno" problema. Nem eu e tão pouco a Adelaide, sabíamos pilotar uma moto. Não tínhamos a mínima ideia sobre a arte da pilotagem de motocicletas. 

A Catarina I

Sem saber pilotar, adquirimos nossa primeira moto, uma Honda Falcon 400, creio que uma das mais altas motos da faixa de cilindradas. Nem as de maiores cilindradas, como as BMW 1200 parecem ser tão altas. Pois bem, convencido pelo amigo e colega de Sicredi Luís Bauer, adquiri a sua Falcon, uma motocicleta 2007, usada. Parecia em bom estado, mas principalmente confiei no amigo já motociclista de longa data e parceiro de luta na empresa. Minha estatura e a estatura da moto, logo mostraram que um teria uma pitada a mais de desafio no processo de aproximação com o equipamento. Mas enfim, moto na mão, sem poder usá-la. Agora a missão era apreender. Minhas primeiras lições não se deram na autoescola, mas sim com os amigos de Rolante e colegas Evandro e Tiago. Fizemos um teste no Parque de Rodeio Rolantchê, e lá as lições de equilíbrio e debrear a marcha foram apreendidas com mérito. Porém precisava tirar a licença de motorista. Inscrito no Detran, iniciei as aulas na pista sinuosa e que continha alguns desafios. A moto lá era uma pequena, o que facilitou, mas os testes de equilibrar a pilotagem em um pequeno degrau, aliado a pista molhada pela chuva e escorregadia, me fizeram derrapar, escapar do degrau e rodar na primeira prova. Nervosismo de iniciante. Na segunda tentativa uma semana depois finalmente após meses de um processo arrastado de aulas, conquisto a carteira e a licença para pilotar motocicletas.

Agora piloto

Nosso primeiro teste de pilotagem e do equipamento adquirido para a viagem foi escolhido. Seria Punta Del Este, e o motivo, uma corrida de Rua. Na época, eu e Adelaide treinávamos e corríamos corridas de rua. Escolhemos participar da Maratona de Punta, na sua segunda ou primeira edição. Queríamos não só adquirir experiência e nos testarmos, mas também testar as roupas e equipamentos já adquiridos para a nossa "grande" viagem de moto, cujo destino já havia sido escolhido, Ushuaia, o Fim do Mundo. Resolutos, nos equipamos. No dia da partida, São Pedro enviou todo o seu estoque de chuva para aquele dia. Amanheceu chovendo muito, mas muito mesmo. Esperamos, infrutiferamente que ela amainasse para que pudéssemos partir. Porém nada de dar uma trégua. Vamos, não vamos. O tempo estava absolutamente proibitivo para uma viagem de moto. Mas como a ignorância é uma benção, e éramos ainda muito ignorantes neste mundo da moto viagem, acreditávamos que nossos equipamentos, roupas de cordura, alforges, luvas e botas eram impermeáveis e infalíveis a chuva. Não precisaram mais dos que os quilômetros iniciais para sabermos que não existe equipamento impermeável. A chuva torrencial, começou molhando pés, mãos, depois corpo. Na altura da cidade de Cristal, já a 100 km de Porto Alegre, onde na época morávamos, estávamos encharcados, com muito frio, de saco cheio e moral baixa, embora eu estivesse determinado (nada como o vigor da juventude, e a ignorância do conhecimento). A Adelaide estava visivelmente abalada e em pré-hipotermia, um café quente nos aqueceu, e os cálculos de meta de chegada para o dia tiveram que ser refeitos. Alcançamos a praia de Cassino onde em uma pousada resolvemos pernoitar. Ao abrirmos nossos alforges, que também foram comprados com a promessa anti-chuva, a terrível constatação que quase tudo estava molhado. Sobrou coincidentemente uma camisa para cada e um cueca e calcinha. Não tínhamos roupa sequer para sair para jantar. Encomendamos um delivery e montamos a operação varal, para secar com a ajuda do ventilador de teto, todas as roupas. 

Em Punta e o Retorno

Apesar do perrengue do dia absurdamente chuvoso, estávamos felizes. Havíamos superando um imenso desafio para marinheiros de primeira viagem. 

Seguimos nosso curso até Punta Del Este, e a pousada escolhida foi um alento, neste dia que repetio a friaca do dia anterior. Ao menos sem Chuva. A calefação do Hotel, o conforto do quarto e a delícia de banho quente nos deixarem realizados.

Cumpri com a minha meta de correr no dia seguinte, em uma manhã também húmida e fria. Rodamos por Punta e conhecemos a impressionante "Casa Pueblo". Lá não sabia que além de estar em um santuário de arte e sensibilidade, estava na casa do pai de um dos sobreviventes dos Andes, história que mais tarde, anos após me capturou. Carloz Paez Villaró, o cara que não desistiu, por conta do amor, de seu filho Carlito, preso nos Andes, após um acidente de avião e que dizimou um terço dos passageiros. Esta é uma história de incrível resiliência, e superação humana, 

(Espaço para contar a história do acidente nos andes).

O Retorno com a Catarina indicava uma viagem tranquila, pois o tempo havia melhorado, estava lindo, estávamos felizes, e a estrada um tapete. 

Mas, esta viagem teste, não poderia deixar de nos testar.

Já na altura de Rio Grande na comunidade da Quinta (entroncamento) que dá acesso a cidade, após já termos superado o famoso santuário do Taim, parados no posto para abastecimento, nossa Falcon Catarina se nega a ligar. Batia o arranque e nada. Ao lado do posto, uma pequena e recém-inaugurada oficina de motos. Lá dois sujeitos começam a investigar. Ficamos empenhados por horas até descobrirmos o problema. Busca peça, abre aqui, olha ali, e agrega uma certa dose de inexperiência aos nossos saudosos mecânicos, para praticamente ficarmos ali no restante do dia. 

Somente a noite descobrimos que o problema era a bobina que carregava a bateria. Mesmo andando a bateria não era carregada. 

Porém descobrimos ali, que alguns fatos, que são em um primeiro momento encarrados como azar ou adversidades, são na verdade, verdadeiros presentes ou verdadeiras bençãos. E o nosso presente neste dia, foi conhecer o João Serra, que aportou ali, alguns minutos depois do ocorrido, e como viajante de moto, logo puxou conversa. Eu, no auge da inexperiência, desconfiado, logo não percebi o tamanho deste presente. Este encontro evoluiu para uma linda amizade, pois logo também conhecemos a Maria Angela (Manja), e deste dia em diante nos relacionamos, viajamos juntos, e nos encontramos no altiplano Peruano, em um emocionante encontro. Até hoje, mesmo distantes, mantemos um imenso e recíproco carinho. 

(espaço para falar sobre as amizades na estrada, o acolhimento, e da quantidade maior de pessoas boas, do que más).

Enfim, esta primeira viagem, com este problema mecânico, nos atrasou por dois dias. Descobrimos que os equipamentos são falíveis, que estraga, que não entregam, mas descobrimos também a nossa força, a nossa capacidade de superar limites, e encontramos dois seres maravilhosos que hoje fazem parte da nossa história.

Quanta a Catarina I, resolvemos vendê-la para adquirirmos a Catarina II, uma Falcon zero quilômetros, pois nossos planos e projetos queriam nos levar mais longe.

o Encontro com o Facon Grande 

Apesar de piloto recente e com quase nada de currículo motociclistico e sem nunca ter feito uma viagem internacional, estava seguro e encorajado de darmos um passo enorme. Iríamos daqui a alguns meses para Ushuaia, conhecido como o Fim do Mundo. As leituras, as pesquisas, e especialmente as viagens virtuais pelo google Earth nos fizeram viajar antes mesmo da partida. 

Apreendi que uma empreitada como esta, conta no seu âmago com inúmeras outras "viagens", ou seja, temos o planejamento (pré-viagem), a execução (a viagem propriamente dita), e o resultado (pós viagem). Todas estas etapas, se continuadas e concatenadas são incríveis e memoráveis experiências. São intensas, e embora trabalhosas, muito prazerosas. Portanto, destino alcançado e rodar para alcança-lo são componentes importantes, mas não se resumem a isso. Curtir a jornada, mesmo antes de inicia-la, na elaboração dos planos, e curtir o processar e o rememorar tudo que se viveu, é algo tão intenso e pleno quanto executar o plano. 

Começamos nossa viagem ao Fim do Mundo no final de 2007, e dentre tantas lindas e inúmeras lembranças desta incrível viagem, uma singela e especial, que pode parecer bobagem para muitos, no entanto, me marcou profundamente, foi quando, naquelas planícies patagônicas, de vegetação seca, espinhosa, monocromática e ventosa, em dado momento da Ruta nacional 03, a que termina no parque Tierra del Fuego, na Baia de Lapataia, de repente avisto em uma rotatória, uma estátua, que me fez retornar a ela e meu coração bater mais forte. Este local, ainda no planejamento da viagem, quando viajei virtualmente, de forma detalhada pelo traçado da Ruta 3, já “virtualmente longe" de nossa casa, vi um pontinho no mapa. Aproximei e vi ali um monumento, que dizia ser de Facon Grande. Achei curioso, mas não aprofundei o tema. Era uma estátua em homenagem ao líder de uma revolta camponesa do início do século, chamada de Patagônia rebelde, nome dado por conta do livro de (Autor), que alcunhou assim com o título do livro, este episódio da história da Argentina. Naquele momento pensei com borboletas no estômago. Olha que incrível quando já tivermos alcançado este ponto, quase metade da viagem a Ushuaia? Ali, ainda no conforto do nosso lar, era difícil de acreditar que logo estaríamos iniciando a viagem que nos levaria ao desconhecido, ao menos, da nossa vida até ali. Será que conseguiríamos? Meses depois, já rodando forte e convicto pela ruta 03, avistamos aquele monumento, antes um pontinho no mapa marrom da patagônia, agora algo concreto e tangível. Estávamos transformando um sonho em realidade. Foi marcante o nosso encontro com o Facon Grande.

Obs: Falar sobre Facon Grande e esta passagem histórica. 

Álvaro e Adelaide no Fim do Mundo

Chegar, após quase 5 mil quilômetros a Ushuaia, na tradicional e desejada placa afixada no final da Ruta Nacional 03, no Parque Nacional Tierra del Fuego, em Ushuaia, é um grande prêmio para viajante. Interessante que nesta placa, há uma informação também mágica, que aguça as vontades dos espíritos viajantes. Nela, além pontuar que você chegou ao final da Ruta 03, ou seja, não há como continuar com veículo automotor, informa que o Alaska, nos EUA, a última fronteira das Américas no extremo norte de nosso continente, está a 17 mil quilômetros daquele lugar, ou seja, no sentido contrário ao que até ali fizemos existe um mundo a ser explorado e conhecido.

A Decisão

Quatorze anos depois destes primeiros e largos quilômetros que fizemos para conhecer um pouco deste incrível planeta, no decorrer da pandemia de Covid que impactou a vida de todos, estávamos eu e Adelaide, refletindo fortemente sobre a nossa vida.

Nestes últimos Quatorze anos empreendemos outras viagens, sempre nas férias e em períodos não superiores a 30 dias.

No ano seguinte a viagem para Ushuaia, buscamos o rumo norte, para conhecer também o deserto do Atacama e ingressar no Peru, onde nosso destino eram as míticas ruinas de Macchu Picchu, as Linhas de Nazca, e o Lago Titicaca, também com a nossa Gloriosa Catarina II.

De lá para cá aconteceram inúmeras histórias em nossas vidas. Foi uma montanha russa de alegrias, realizações, surpresas e dramas que testaram a nossa capacidade de nos reconstruímos.

Por conta do trabalho e da nossa primeira gravidez, na espera do Artur, nos mudamos de Porto Alegre para Rolante.

Ainda fizemos um acampamento na nossa agora saudosa Garopaba, no Camping Lagoa Mar, de tantos bons momentos, com o Artur tendo 9 meses. Foi muito legal, até o dia que começou a chover, esfriar, e umedecer todo o ambiente. Nosso pequeno guerreiro, que nos dias anteriores não deixava uma panela se quer dentro das prateleiras dos balcões do nosso acampamento, e que começava a ensaiar os primeiros passos, se resfriou e adoeceu, inflamando a garganta. Ele chorava de dor, não conseguia dormir, e a cada choro que mostrava a sua dor, eram como facadas no coração deste pai de “primeira viagem”. Fiquei muito arrependido de coloca-lo nesta situação. A responsabilidade foi minha e aquilo me deixou arrasado. Olhando hoje para o evento, parece uma bobagem, mas viver aquela situação me abalou sobremaneira. No dia seguinte, após a ida ao médico e a receita de um antibiótico que o fez melhorar, comecei a desmontar o acampamento, ainda naquela tarde. Já quase a tardinha, iniciamos nossa viagem para casa. A viagem foi penosa e cansativa e avançou madrugada a dentro. Neste dia prometi que adquiriríamos uma casa rodante, para poder explorar o mundo, de forma mais autônoma, confortável e segura.

Em 2011, encomendamos nosso primeiro Motor Home, feito em uma van Renault Master. Sem experiência alguma, escolhemos um modelo de habitação que vimos na empresa, modelo que nos apaixonamos. Era uma casinha de boneca de tão linda e arrumadinha.

O Uso logo se mostrou pouco prático. Com frequência bati a cabeça ou os dedos dos pés em algum móvel ou obstáculo interno desnecessário.  Ali apreendemos que neste mundo do caravanismo, o menos é mais.

Obs: Escrever algo sobre minimalismo e essencialismo.

Viajamos pouco com este motor home, mesmo assim, fizemos algumas curtas viagens, e vivemos experiências interessantes. Estávamos adquirindo experiencia neste mundo do caravanismo.

Em janeiro de 2014, no exato dia que a Adelaide daria à luz ao Davi, estava eu negociando e vendendo este motor home. Assim que o Negócio foi feito, já 14:00 hrs da tarde, saem do Sítio Wanderlust o novo proprietário com seu novo Motor Home e nós, rumo ao hospital, pois o Davi estava pedindo passagem.

Era hora de repensar as intenções.

O Davi, assim como o Artur vem muito desejado, e com imenso amor de seus pais. Estava agora em nossas vidas, quem faltava para que nossos planos pudessem estar completos. Nossos planos envolviam dois filhos que seriam parceiros e amigos e curtiriam com a gente uma vida de viagens, onde sua educação se daria na estrada, a exemplo de nossos inspiradores, a família Schurmann.

Já na gravidez pudemos perceber que o Davi era diferente do Artur. Enquanto o primeiro parecia uma britadeira na barriga da mãe de tanto que se mexia e chutava, o segundo era tranquilo e quietinho.

Seis meses após o nascimento, a Adelaide constatou, como mãe observadora e zelosa, aliás uma supermãe, que algo diferente acontecia com o Davi. A começar pela simetria de suas pernas. Uma estava mais comprida que a outra.

Ali inicia uma peregrinação por consultórios e médicos.

O Davi possuia uma displasia no seu quadril, que fazia ele ter esta diferença nas pernas.

Porém nesta rodada em consultórios e diversos médicos, todos também constataram que o Davi possuía sintomas de espasticidade, hiper e hipotonia nos membros e corpo.

Nenhum exame, neurológico ou genético, dos diversos e super aprofundados feitos até ali indicavam algum evento neurológico ou genético. Porém o Davi possuía, como logo constatado, algumas manifestações físicas (espasticidade e hipo e hipertonia), que indicavam uma paralisia cerebral, que havia ocorrido em algum momento de sua vida.

Até hoje não sabemos que mal acometeu nosso filho, apesar de termos esgotado todos os recursos possíveis e ao nosso alcance para descobrir. Quando nos pedem o que ele sofreu ou tem, dizemos que foi uma paralisia cerebral leve, embora eu particularmente não acredite nisso, pois cognitivamente ele é preservado, perfeito e acima da média em inteligência e perspicácia. A paralisia cerebral penso eu, teria também afetado esta condição. Na verdade, as dificuldades do Davi se resumem a sua condição motora.

Pois bem, toda esta jornada, vivida por nós e pelo Davi, entre médicos, exames, furos de agulha, e três complexas cirurgias, nos impactaram profundamente.

Naqueles dias de angustia e preocupação, entediamos que não mais seria possível nosso sonho de viver na estrada.

Engavetamos esta possibilidade, e nos conformamos com a possibilidade de escrevermos uma outra história.

Quem disse que o jeito que tu fazes é certo?

Um dia resolvemos, nesta peregrinação, consultar especialistas do centro do país, médicos renomados, do Complexo Sara Kubicheck e do Albert Einstein em SP. Rumamos todos, de avião para SP, especialmente para estas consultas. O primeiro neurologista geneticista, foi a autoridade que fez o laudo de exame genético do Davi, um raro e caríssimo exame genético, o que havia de mais completo no mundo até então. Soubemos que ele fez o laudo no momento da consulta. Realmente estávamos entre as maiores autoridades. À tarde, já no Albert Einstein, um Neuro-ortopedista, também renomado, examinou cuidadosamente o Davi. Após o exame, já todos nós quatro, sentados em frente a sua mesa, ele foi o primeiro e único médico a ser enfático no diagnóstico de paralisia cerebral. Ali resolvemos adotar esta pecha para dizer o que o Davi possuía.

Mas o que me marcou pessoalmente foi quando, após conselhos e orientações, este médico, olha para o Davi e o observa concentrado manuseando o celular pois jogava algum das dezenas de jogos armazenados no celular, e o fazia da forma que conseguia, com suas mãozinhas encolhidas e mais enrijecidas que as nossas, usando dedos diferentes do que usamos, então desvia o olhar para nós pais e diz:

- Quem disse que a forma dele mexer com o celular é errada, e a forma como nós mexemos é a certa??? Ele encontrou e encontrará a forma dele de fazer as coisas. Ele encontrará o seu caminho.

Aquela manifestação, simples, causou algum clique ou algum efeito em mim. Algo se libertou naquele momento. Até ali eu custava a aceitar a condição do Davi, entendia que poderia haver alguma possibilidade de rever a condição das limitações que lhe eram impostas. Eu resistia e não aceitava esta condição. Este médico com este simples enunciado, me fez ver que não existe normal. Somos únicos, e não existe certo ou errado. Existe a forma que encontramos de fazer e cada um, na sua individualidade encontrará a sua. Comecei após este clique a aliviar o peso da caminhada. O Davi encontraria com a sua forma de construir alternativas, o seu caminho. A propósito, se pelas circunstâncias impostas ao Davi ele possui algumas limitações motoras, em outras, a sua capacidade é ilimitada, especialmente no que se refere a sua Inteligência e perspicácia.

Desde dia em diante o antigo projeto engavetado, de um dia alcançar a independência financeira, sair da empresa, morar na estrada, viajar pelo mundo e educar os filhos nesta realidade, começou a novamente a encontrar espaços em nossa vida.

Então vem a Pandemia

A Pandemia, que tantas vidas ceifou, e tantas dificuldades e traumas nos causou, também nos ensinou. Passamos meses trabalhando remotamente, junto de nossas famílias.

Neste ambiente de maior contato com os nossos, com a nossa família, com os nossos livros, com uma certa ociosidade, a vontade de ser livre cresce de forma avassaladora.

Sempre ideamos um dia sair da empresa e viver na estrada, morando em um Motor Home, porém a segurança de um emprego, ainda mais na minha condição, com ótima remuneração, ótimos benefícios, plano de saúde e outras benesses me colocavam, embora em uma atividade desafiante e que me exigia sobremaneira, em uma certa bolha de conforto. Sim, vivia em uma bolha. Abrir mão de tudo isso, para viver na estrada, viajando e educando nossos filhos, era trocar a certeza pela incerteza, a permanência, pela impermanência. Era abrir mão de muito, era renunciar tudo isso em nome de uma escolha, e embora eu sempre reafirmasse a vontade de um dia fazer isso, esse passo era absurdamente enorme, e não conseguia dá-lo. Foi muito difícil a decisão. Mas me compromissei em voz alta com ela. Expressei ela a minha amiga Daniela, profissional de RH que muito nos auxiliou na Empresa e virou grande amiga. Uma vez feito isso, somente olhei para frente, informando na sequencia meu superior e meu sucessor. Iniciava ali um processo de sucessão que durou 1 ano e meio.

Sempre digo, que este foi o preço da liberdade, e hoje o pagaria novamente, se assim fosse necessário.

Sempre estabeleci uma relação boa com os outros agregados de um cargo como o que exercia, entre eles a vaidade, o status, o poder. Nunca me apeguei a estes aspectos, pelo contrário, me incomodavam. Abrir mão desses itens agregados e inerentes ao exercício do cargo foi tarefa fácil, pois sempre tive consciência que estava em uma atribuição e responsabilidade importante, mas eu não era este cargo. Estava diretor, não era diretor. Sempre separei o humano do cargo, aspecto esse, que fazem muitos executivos entrarem em parafuso. Para mim, esta face de cargos como este, não me atingiam.

Mas a segurança em troca da incerteza, era o que me preocupava, até o dia da decisão. Depois de expressá-la, um grande peso saiu dos meus ombros, e comecei ali a curtir um luto. Começava a enterrar um Álvaro, para dar espaço de nascimento a outro.

Aliás, a família toda começava a ver que, a partir do que a Pandemia nos condicionava a descobrir, que várias outras coisas e situações poderiam ser feitas remotamente, desde a educação dos filhos, algo já ideado a muito tempo, até as fisioterapias do Davi, que nos preocupavam, pois eram feitas por profissionais. Fora, outros aspectos, como contato com a famílias, aspectos burocráticos, compromissos, atividades físicas, consultas médicas, etc. A tecnologia e o uso dela disseminado na pandemia nos encorajaram também a dar o passo definitivo, rumo a um novo ciclo em nossas vidas.

Enfim, como dito, olhávamos agora para frente, e planejávamos nossa partida, e nossa mudança para a casa rodante.

Neste período de transição na empresa, além dos aspectos relacionados a sucessão, havia um processo de amadurecimento do Álvaro na nova condição, sem profissão, e isso era algo ainda a ser processado, pois entendia possível com a minha experiência e Know How acumulado na minha profissão, ser possível atuar como mentor de outros profissionais. Tanto que me capacitei para isso. Na prática, isso se mostrou mais desafiante e desgastante do que imaginava. Não gostei de ser mentor. Logo percebi, que assumir alguma outra atividade, subtrairia vivenciar a experiência que estávamos tendo.

Minha “carreira” como mentor se mostrou infrutífera e me entendi não capaz de abraça-la.

O Novo Ciclo se inicia

Então o novo ciclo, agora já fora da empresa, se faz totalmente presente. Uma situação que incrivelmente ocorreu foi a procrastinação da nossa partida. Sempre algo novo surgia, que nos fazia adiar o dia do início de nossa viagem. Desde situações médicas, até uma absurda e ridícula constatação, que ignorava até ali, pois entendia diferente. Eu não estava habilitado para conduzir o Yete, nosso Motor Home F4000. E constatei isso, a partir de uma multa. Pensava, e não só eu, mas também o proprietário anterior, que o Peso e a capacidade de carga do nosso Motor Home, possibilitava a carteira B, porém a interpretação da norma, fazia com que o PBT (Peso Bruto Total) do veículo, e não seu peso efetivo, definisse a classificação da habilitação. 6 mil kg e 6 passageiros, eram os limites para um Veiculo Recreacional permitir a carteira B. Nosso Yete possuía um PBT de 6,8 toneladas. Aos 45 minutos do segundo tempo para o início de nossa viagem precisei encontrar datas junto ao Detran para fazer o curso de Carteira D e passar na prova. Depois de mais de um mês nesta função que adiou por mais dois meses nossa partida, cuja demora maior foi o espaço na agenda dos instrutores para iniciar, de forma intensiva (até 3 aulas por dia, de um total de 20) um “curso” para “inglês e monitor de prova ver”. Uma ficção, e além da procrastinação imposta, o custo deste processo, e o saco que era aguentar instruções que na vida real, não tinham aplicação. Mais um stress agregado a este fato era a possibilidade de tudo isso não dar certo, pois a infração de conduzir de forma inabilitada era gravíssima, e uma infração gravíssima, permitiria a mudança de faixa somente daqui um amo. Temendo morrer na praia de nosso projeto, recorri a justiça. Depois constatei que não teria sido necessário, pois os órgãos oficiais não efetivaram esta negativa de possibilidade de renovação da carteira constante da norma.

Humus, a essência da Terra

Humus, a essência da Terra, ligando os extremos, foi o nome dado a esta nova fase de nossa vida. A primeira etapa, seria conhecer uma parte do Brasil, este desconhecido para todos nós. Conhecíamos muito mais nossos vizinhos países, como Uruguai, Argentina, Chile e Peru, das diversas viagens de moto ou motor casa, do que nosso continental Brasil. Então, após um ano de adaptações do Yete, nosso Motor Home, da transição junto a empresa que liderava e que fiz carreira, e um período de diversas intercorrências que procrastinaram nossa partida, finalmente em Junho de 2022, partíamos.

Foi uma partida, não partida, pois ainda passaríamos na DHR Overlander, onde alguns pequenos ajustes precisariam ser feitos no Yete, e também uma adaptação a Bike triciclo do Davi. Partimos já no final da tarde de um pré-feriado, e caímos em um Gramado absolutamente congestionada. Era caminho necessário para chegar a fabrica do nosso amigo Douglas. Um caos que somavam tudo que não queríamos. Uma cidade gananciosa, que soube competentemente promover seu posicionamento, mas não soube devolver em infraestrutura o que recebeu, uma multidão em busca de algo, especialmente em busca de preenchimento de vazios existências. Uma horda de seres humanos atrás da selfie perfeita que irá mostrar ao mundo uma vida também perfeita, SQN. Fornecedores, caminhões ou entregadores, e um Motor Home grande, desajeitado, e incauto no meio de tudo isso, levando uma família, que está em busca do contrário de tudo isso. Não gosto de Gramado, mas admiro sua história de sucesso. Aliás, acho Gramado linda, com suas casas, seus jardins e suas opções, mas infelizmente, um mundo de fantasia, em nome das maiores possibilidades de faturamento possível hoje orienta suas decisões. Isso tudo aliando a um mundo de gente preocupada com a opinião dos outros. Menos em, curtir, mais em mostrar. Não me entendam mal. Não sou contrário ao sucesso absoluto desta cidade, dos seus empreendedores e moradores, pelo contrário, já disse, eu os admiro. Também não sou contrário aos milhares de turísticas que amam e buscam se divertir, curtir e experiência as diversas possibilidades deste local. Minha crítica está nas camadas mais profundas dos motivadores de tudo isso.

Chegando finalmente em Canela, após quase duas horas travados e presos em um trecho de não mais de dois quilômetros que cruza o centro de Gramado, única opção para quem quer chegar a Canela, aportamos em frente a casa do nosso amigo Douglas, já tarde de uma noite que seria muito fria.

Tínhamos mais uma missão neste dia, triste, mas necessária. Precisávamos encontrar um novo lar para nossa querida Minci, nossa gata companheira, amiga e carinhosa. A Minci era uma fiel companheira com poderes sensoriais. Aliás, dizem que os gatos são seres de energia. E uma ocasião, quando Davi, voltando para casa após uma trabalhosa cirurgia de quadril, onde ficou na UTI e no hospital por uma semana, com faixas e talas que imobilizam as duas pernas, já sentado no sofá da sala, nossa Minci sobe o sofá, tateia com seus nariz e bigode as pernas do pequeno Davi, para na sequencia se aninhar sobre as pernas. Nunca antes ela havia feito isso, mas naquele dia, ela sobe e se coloca sobre o local do corpo onde o Davi sofreu a cirurgia. Essa e tantas outras manifestações que tínhamos uma companheira diferente, e que amávamos, fez desta missão, algo doloroso.

Não seria possível submeter a Minci a esta viagem. Entendemos que o processo, a convivência, os cuidados necessários, a burocracia nas fronteiras de outros países, onerariam ainda mais um projeto, que pelas características e participantes, já era bastante complexo.

Mas escolhemos a dedo a nova família, pois o Douglas e sua esposa Simone são dois humanos que amam muito os animais, tanto que acolheram já alguns desamparados em sua casa, sendo a principal a Lola, uma vira-lata que tem enorme ciúmes do Douglas. A Simone além de amar cães, ama também gatos. E não foi difícil para a Minci e eles logo se entenderem. A Minci ainda levaria um ano para estar completamente à vontade com ambos, apesar do acolhimento. Para nós restou a saudade de uma grande companheira.

No dia seguinte, o mundo desabou sobre Canela, e a chuva torrencial não deu trégua. Foi difícil dar seguimento aos detalhes que queríamos lá na DHR, entre eles uma adaptação para a bike do Davi, que consistia em podermos diminuir a altura do assento. Apesar de bem-feita a adaptação, nunca conseguimos utiliza-la, pelas dimensões do Davi. Ele não alcançava os pedais. Talvez ainda estivéssemos presos a síndrome do nunca está bom, ou em busca do momento, ou equipagem perfeita. Aliás, essa síndrome que faz muitos bem-intencionados sonhos e projetos, nunca acontecerem.

Obs: escrever uma crônica sobre esta síndrome do momento perfeito (o ótimo sendo inimigo do bom);

Fechamos esse dia frio e chuvoso com um “entrevero” a moda Douglas, em sua casa e com amigos, também clientes da DHR.

Voltamos a estaca zero.

No dia seguinte, a síndrome nos atacou. Decidimos, ao invés de seguir viagem, voltar para Rolante, onde a Adelaide queria lavar as roupas que molharam na intensidade da chuva do dia anterior. Para mim foi extremamente frustrante, e esses impasses e a busca, especialmente por parte dela do momento perfeito, tem sido motivos de brigas.

Para mim custou muito caro sair da empresa, e agora parece que não havia jeito de finamente estarmos na estrada. Pareciam aqueles pesadelos onde você corre e não sai do lugar. Quando somente possuíamos as férias para rodar, tínhamos que nos programar dentro daqueles 30 dias, e a otimização de tempo e aproveitamento era muito maior. Porém agora que temos tempo, a procrastinação tomou conta de nossa dinâmica. E isso tem me feito muito mal. Muita ansiedade e stress. O tempo está passando e as crianças crescendo. Tudo isso nos mostra o quanto ainda temos que mudar nosso mindset, nossa forma de nos relacionarmos com as coisas, com o tempo e com as nossas referências. Morar em um Motor home deve mudar necessariamente a dinâmica de vida.

Enfim a Jornada Humus finalmente inicia.

 

 

 

 

 

 


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