Jornada Humus, um compilado
Era o encontro de final de ano da Sicredi Caminho das Águas,
Sicredi que já fazia parte da minha vida por mais de 27 anos. Nesta cooperativa
completava neste momento, dezembro de 2021, 15 anos, que renderam muita
experiência, uma coleção de histórias de superação e a fase mais definitiva e
importante da minha carreira, que me levou neste período a condição de diretor
executivo, cargo almejado por muitos e quase o topo da carreira de quem
trabalha nesta instituição. Já liderará e organizará, junto com as minhas
equipes, diversos seminários como este. Porém o de hoje era especial, pois
seria o último como colaborador desta empresa da qual tinha uma relação de amor
e ódio. Eu sabia que haveriam homenagens, e já desde o seu início, com a fala
do presidente, entendi que o que queriam ter feito já havia passado. E este
momento foi emocionante. Porém nada havia me preparado para as homenagens
surpresas, onde um coquetel de incríveis ações foi feito, entre elas, a leitura
de uma linda biografia que remetia a fatos da minha infância, referências da
minha juventude, o encontro com a Adelaide e a vinda dos meus filhos, bem como
o forte desejo de conhecer o mundo. A entrada surpresa de minha família me
desmontou emocionalmente e não tive como conter as lágrimas. Estava agora sim,
definitivamente encerrando um ciclo de 27 anos, abrindo mão de uma carreira, de
uma ótima remuneração, de saborear a vitória de um trabalho de resgate de uma
empresa falida quando iniciei, e do status de uma posição desejada por muitos,
e em um trabalho que amava. E tudo isso com 50 anos idade, sem estar ainda
aposentado, abrindo mão de carreira, entregando de mão beijada para meu
sucessor um legado de trabalho e realização que agora poderia usufruir. E
porque tudo isso?
Vamos
retroceder esta fita até os anos 2007.
Neste ano, após acampar de barraca, por muitos anos com a minha
parceria Adelaide, pratica que herdei por influência de meus pais, e com uma
estrutura montada para poder ser utilizada no camping Lagoa Mar de Garopaba,
SC, o desejo de explorar o mundo surge forte, especialmente pelas leituras de
livros de grandes exploradores, entre eles a família Schurmann e Amyr Klink,
velejadores. Estávamos cansados de todos os anos nas férias que não
ultrapassavam 15 dias, ir para o mesmo destino, que a propósito, eram dias
deliciosos. Nestes diversos anos de Lagoa Mar e Garopaba, colecionamos lindas e
queridas memórias. Mas junto com esta vontade, a constatação, que velejar
estava longe de nossas possibilidades. Então vieram livros de motociclistas, em
especial o gaúcho Chardô, o Casal Catarinense Rauen e outros tantos. Estava decidido!!!
Iniciaríamos nossa vida de viagens e aventuras com uma motocicleta. Entendíamos
que este meio seria o mais adequado para o nosso atual nível de capacidade
financeira. Entendemos que nela havia um ótimo custo benefício. Entusiasmados começamos
a sonhar com viagens de moto. Porém havia um "pequeno" problema. Nem
eu e tão pouco a Adelaide, sabíamos pilotar uma moto. Não tínhamos a mínima
ideia sobre a arte da pilotagem de motocicletas.
A Catarina I
Sem saber pilotar, adquirimos nossa primeira moto, uma Honda
Falcon 400, creio que uma das mais altas motos da faixa de cilindradas. Nem as
de maiores cilindradas, como as BMW 1200 parecem ser tão altas. Pois bem,
convencido pelo amigo e colega de Sicredi Luís Bauer, adquiri a sua Falcon, uma
motocicleta 2007, usada. Parecia em bom estado, mas principalmente confiei no
amigo já motociclista de longa data e parceiro de luta na empresa. Minha
estatura e a estatura da moto, logo mostraram que um teria uma pitada a mais de
desafio no processo de aproximação com o equipamento. Mas enfim, moto na mão,
sem poder usá-la. Agora a missão era apreender. Minhas primeiras lições não se
deram na autoescola, mas sim com os amigos de Rolante e colegas Evandro e
Tiago. Fizemos um teste no Parque de Rodeio Rolantchê, e lá as lições de
equilíbrio e debrear a marcha foram apreendidas com mérito. Porém precisava
tirar a licença de motorista. Inscrito no Detran, iniciei as aulas na pista
sinuosa e que continha alguns desafios. A moto lá era uma pequena, o que
facilitou, mas os testes de equilibrar a pilotagem em um pequeno degrau, aliado
a pista molhada pela chuva e escorregadia, me fizeram derrapar, escapar do
degrau e rodar na primeira prova. Nervosismo de iniciante. Na segunda tentativa
uma semana depois finalmente após meses de um processo arrastado de aulas,
conquisto a carteira e a licença para pilotar motocicletas.
Agora piloto
Nosso primeiro teste de pilotagem e do equipamento adquirido para
a viagem foi escolhido. Seria Punta Del Este, e o motivo, uma corrida de Rua.
Na época, eu e Adelaide treinávamos e corríamos corridas de rua. Escolhemos
participar da Maratona de Punta, na sua segunda ou primeira edição. Queríamos
não só adquirir experiência e nos testarmos, mas também testar as roupas e
equipamentos já adquiridos para a nossa "grande" viagem de moto, cujo
destino já havia sido escolhido, Ushuaia, o Fim do Mundo. Resolutos, nos
equipamos. No dia da partida, São Pedro enviou todo o seu estoque de chuva para
aquele dia. Amanheceu chovendo muito, mas muito mesmo. Esperamos,
infrutiferamente que ela amainasse para que pudéssemos partir. Porém nada de
dar uma trégua. Vamos, não vamos. O tempo estava absolutamente proibitivo para
uma viagem de moto. Mas como a ignorância é uma benção, e éramos ainda muito
ignorantes neste mundo da moto viagem, acreditávamos que nossos equipamentos,
roupas de cordura, alforges, luvas e botas eram impermeáveis e infalíveis a
chuva. Não precisaram mais dos que os quilômetros iniciais para sabermos que
não existe equipamento impermeável. A chuva torrencial, começou molhando pés,
mãos, depois corpo. Na altura da cidade de Cristal, já a 100 km de Porto
Alegre, onde na época morávamos, estávamos encharcados, com muito frio, de saco
cheio e moral baixa, embora eu estivesse determinado (nada como o vigor da
juventude, e a ignorância do conhecimento). A Adelaide estava visivelmente
abalada e em pré-hipotermia, um café quente nos aqueceu, e os cálculos de meta
de chegada para o dia tiveram que ser refeitos. Alcançamos a praia de Cassino
onde em uma pousada resolvemos pernoitar. Ao abrirmos nossos alforges, que
também foram comprados com a promessa anti-chuva, a terrível constatação que
quase tudo estava molhado. Sobrou coincidentemente uma camisa para cada e um
cueca e calcinha. Não tínhamos roupa sequer para sair para jantar. Encomendamos
um delivery e montamos a operação varal, para secar com a ajuda do ventilador
de teto, todas as roupas.
Em Punta e o
Retorno
Apesar do perrengue do dia absurdamente chuvoso, estávamos
felizes. Havíamos superando um imenso desafio para marinheiros de primeira
viagem.
Seguimos nosso curso até Punta Del Este, e a pousada escolhida foi
um alento, neste dia que repetio a friaca do dia anterior. Ao menos sem Chuva.
A calefação do Hotel, o conforto do quarto e a delícia de banho quente nos
deixarem realizados.
Cumpri com a minha meta de correr no dia seguinte, em uma manhã também
húmida e fria. Rodamos por Punta e conhecemos a impressionante "Casa
Pueblo". Lá não sabia que além de estar em um santuário de arte e
sensibilidade, estava na casa do pai de um dos sobreviventes dos Andes,
história que mais tarde, anos após me capturou. Carloz Paez Villaró, o cara que
não desistiu, por conta do amor, de seu filho Carlito, preso nos Andes, após um
acidente de avião e que dizimou um terço dos passageiros. Esta é uma
história de incrível resiliência, e superação humana,
(Espaço para contar a
história do acidente nos andes).
O Retorno com a Catarina indicava uma viagem tranquila, pois o
tempo havia melhorado, estava lindo, estávamos felizes, e a estrada um
tapete.
Mas, esta viagem teste, não poderia deixar de nos testar.
Já na altura de Rio Grande na comunidade da Quinta (entroncamento)
que dá acesso a cidade, após já termos superado o famoso santuário do Taim,
parados no posto para abastecimento, nossa Falcon Catarina se nega a ligar.
Batia o arranque e nada. Ao lado do posto, uma pequena e recém-inaugurada
oficina de motos. Lá dois sujeitos começam a investigar. Ficamos empenhados por
horas até descobrirmos o problema. Busca peça, abre aqui, olha ali, e agrega
uma certa dose de inexperiência aos nossos saudosos mecânicos, para praticamente
ficarmos ali no restante do dia.
Somente a noite descobrimos que o problema era a bobina que
carregava a bateria. Mesmo andando a bateria não era carregada.
Porém descobrimos ali, que alguns fatos, que são em um primeiro
momento encarrados como azar ou adversidades, são na verdade, verdadeiros
presentes ou verdadeiras bençãos. E o nosso presente neste dia, foi conhecer o
João Serra, que aportou ali, alguns minutos depois do ocorrido, e como viajante
de moto, logo puxou conversa. Eu, no auge da inexperiência, desconfiado, logo
não percebi o tamanho deste presente. Este encontro evoluiu para uma linda
amizade, pois logo também conhecemos a Maria Angela (Manja), e deste dia em
diante nos relacionamos, viajamos juntos, e nos encontramos no altiplano Peruano,
em um emocionante encontro. Até hoje, mesmo distantes, mantemos um imenso e
recíproco carinho.
(espaço para falar sobre as
amizades na estrada, o acolhimento, e da quantidade maior de pessoas boas, do
que más).
Enfim, esta primeira viagem, com este problema mecânico, nos
atrasou por dois dias. Descobrimos que os equipamentos são falíveis, que
estraga, que não entregam, mas descobrimos também a nossa força, a nossa
capacidade de superar limites, e encontramos dois seres maravilhosos que hoje
fazem parte da nossa história.
Quanta a Catarina I, resolvemos vendê-la para adquirirmos a
Catarina II, uma Falcon zero quilômetros, pois nossos planos e projetos queriam
nos levar mais longe.
o Encontro
com o Facon Grande
Apesar de piloto recente e com quase nada de currículo
motociclistico e sem nunca ter feito uma viagem internacional, estava seguro e
encorajado de darmos um passo enorme. Iríamos daqui a alguns meses para
Ushuaia, conhecido como o Fim do Mundo. As leituras, as pesquisas, e
especialmente as viagens virtuais pelo google Earth nos fizeram viajar antes
mesmo da partida.
Apreendi que uma empreitada como esta, conta no seu âmago com
inúmeras outras "viagens", ou seja, temos o planejamento (pré-viagem),
a execução (a viagem propriamente dita), e o resultado (pós viagem). Todas
estas etapas, se continuadas e concatenadas são incríveis e memoráveis
experiências. São intensas, e embora trabalhosas, muito prazerosas. Portanto,
destino alcançado e rodar para alcança-lo são componentes importantes, mas não
se resumem a isso. Curtir a jornada, mesmo antes de inicia-la, na elaboração
dos planos, e curtir o processar e o rememorar tudo que se viveu, é algo tão
intenso e pleno quanto executar o plano.
Começamos nossa viagem ao Fim do Mundo no final de 2007, e dentre
tantas lindas e inúmeras lembranças desta incrível viagem, uma singela e
especial, que pode parecer bobagem para muitos, no entanto, me marcou
profundamente, foi quando, naquelas planícies patagônicas, de vegetação seca,
espinhosa, monocromática e ventosa, em dado momento da Ruta nacional 03, a que
termina no parque Tierra del Fuego, na Baia de Lapataia, de repente avisto em
uma rotatória, uma estátua, que me fez retornar a ela e meu coração bater mais
forte. Este local, ainda no planejamento da viagem, quando viajei virtualmente,
de forma detalhada pelo traçado da Ruta 3, já “virtualmente longe" de
nossa casa, vi um pontinho no mapa. Aproximei e vi ali um monumento, que dizia
ser de Facon Grande. Achei curioso, mas não aprofundei o tema. Era uma estátua
em homenagem ao líder de uma revolta camponesa do início do século, chamada de
Patagônia rebelde, nome dado por conta do livro de (Autor), que alcunhou assim com
o título do livro, este episódio da história da Argentina. Naquele momento pensei
com borboletas no estômago. Olha que incrível quando já tivermos alcançado este
ponto, quase metade da viagem a Ushuaia? Ali, ainda no conforto do nosso
lar, era difícil de acreditar que logo estaríamos iniciando a viagem que nos
levaria ao desconhecido, ao menos, da nossa vida até ali. Será que conseguiríamos?
Meses depois, já rodando forte e convicto pela ruta 03, avistamos aquele
monumento, antes um pontinho no mapa marrom da patagônia, agora algo concreto e
tangível. Estávamos transformando um sonho em realidade. Foi marcante o nosso
encontro com o Facon Grande.
Obs: Falar sobre Facon
Grande e esta passagem histórica.
Álvaro e
Adelaide no Fim do Mundo
Chegar, após quase 5 mil quilômetros a Ushuaia, na tradicional e
desejada placa afixada no final da Ruta Nacional 03, no Parque Nacional Tierra
del Fuego, em Ushuaia, é um grande prêmio para viajante. Interessante que nesta
placa, há uma informação também mágica, que aguça as vontades dos espíritos
viajantes. Nela, além pontuar que você chegou ao final da Ruta 03, ou seja, não
há como continuar com veículo automotor, informa que o Alaska, nos EUA, a
última fronteira das Américas no extremo norte de nosso continente, está a 17
mil quilômetros daquele lugar, ou seja, no sentido contrário ao que até ali fizemos
existe um mundo a ser explorado e conhecido.
A Decisão
Quatorze anos depois destes primeiros e largos quilômetros que
fizemos para conhecer um pouco deste incrível planeta, no decorrer da pandemia
de Covid que impactou a vida de todos, estávamos eu e Adelaide, refletindo
fortemente sobre a nossa vida.
Nestes últimos Quatorze anos empreendemos outras viagens, sempre
nas férias e em períodos não superiores a 30 dias.
No ano seguinte a viagem para Ushuaia, buscamos o rumo norte, para
conhecer também o deserto do Atacama e ingressar no Peru, onde nosso destino
eram as míticas ruinas de Macchu Picchu, as Linhas de Nazca, e o Lago Titicaca,
também com a nossa Gloriosa Catarina II.
De lá para cá aconteceram inúmeras histórias em nossas vidas. Foi
uma montanha russa de alegrias, realizações, surpresas e dramas que testaram a
nossa capacidade de nos reconstruímos.
Por conta do trabalho e da nossa primeira gravidez, na espera do
Artur, nos mudamos de Porto Alegre para Rolante.
Ainda fizemos um acampamento na nossa agora saudosa Garopaba, no
Camping Lagoa Mar, de tantos bons momentos, com o Artur tendo 9 meses. Foi
muito legal, até o dia que começou a chover, esfriar, e umedecer todo o
ambiente. Nosso pequeno guerreiro, que nos dias anteriores não deixava uma
panela se quer dentro das prateleiras dos balcões do nosso acampamento, e que
começava a ensaiar os primeiros passos, se resfriou e adoeceu, inflamando a
garganta. Ele chorava de dor, não conseguia dormir, e a cada choro que mostrava
a sua dor, eram como facadas no coração deste pai de “primeira viagem”. Fiquei
muito arrependido de coloca-lo nesta situação. A responsabilidade foi minha e
aquilo me deixou arrasado. Olhando hoje para o evento, parece uma bobagem, mas
viver aquela situação me abalou sobremaneira. No dia seguinte, após a ida ao
médico e a receita de um antibiótico que o fez melhorar, comecei a desmontar o
acampamento, ainda naquela tarde. Já quase a tardinha, iniciamos nossa viagem
para casa. A viagem foi penosa e cansativa e avançou madrugada a dentro. Neste
dia prometi que adquiriríamos uma casa rodante, para poder explorar o mundo, de
forma mais autônoma, confortável e segura.
Em 2011, encomendamos nosso primeiro Motor Home, feito em uma van
Renault Master. Sem experiência alguma, escolhemos um modelo de habitação que
vimos na empresa, modelo que nos apaixonamos. Era uma casinha de boneca de tão
linda e arrumadinha.
O Uso logo se mostrou pouco prático. Com frequência bati a cabeça
ou os dedos dos pés em algum móvel ou obstáculo interno desnecessário. Ali apreendemos que neste mundo do
caravanismo, o menos é mais.
Obs: Escrever algo sobre minimalismo e essencialismo.
Viajamos pouco com este motor home, mesmo assim, fizemos algumas
curtas viagens, e vivemos experiências interessantes. Estávamos adquirindo
experiencia neste mundo do caravanismo.
Em janeiro de 2014, no exato dia que a Adelaide daria à luz ao
Davi, estava eu negociando e vendendo este motor home. Assim que o Negócio foi feito,
já 14:00 hrs da tarde, saem do Sítio Wanderlust o novo proprietário com seu
novo Motor Home e nós, rumo ao hospital, pois o Davi estava pedindo passagem.
Era hora de
repensar as intenções.
O Davi, assim como o Artur vem muito desejado, e com imenso amor
de seus pais. Estava agora em nossas vidas, quem faltava para que nossos planos
pudessem estar completos. Nossos planos envolviam dois filhos que seriam
parceiros e amigos e curtiriam com a gente uma vida de viagens, onde sua
educação se daria na estrada, a exemplo de nossos inspiradores, a família
Schurmann.
Já na gravidez pudemos perceber que o Davi era diferente do Artur.
Enquanto o primeiro parecia uma britadeira na barriga da mãe de tanto que se
mexia e chutava, o segundo era tranquilo e quietinho.
Seis meses após o nascimento, a Adelaide constatou, como mãe
observadora e zelosa, aliás uma supermãe, que algo diferente acontecia com o
Davi. A começar pela simetria de suas pernas. Uma estava mais comprida que a
outra.
Ali inicia uma peregrinação por consultórios e médicos.
O Davi possuia uma displasia no seu quadril, que fazia ele ter
esta diferença nas pernas.
Porém nesta rodada em consultórios e diversos médicos, todos
também constataram que o Davi possuía sintomas de espasticidade, hiper e
hipotonia nos membros e corpo.
Nenhum exame, neurológico ou genético, dos diversos e super
aprofundados feitos até ali indicavam algum evento neurológico ou genético.
Porém o Davi possuía, como logo constatado, algumas manifestações físicas (espasticidade
e hipo e hipertonia), que indicavam uma paralisia cerebral, que havia ocorrido
em algum momento de sua vida.
Até hoje não sabemos que mal acometeu nosso filho, apesar de
termos esgotado todos os recursos possíveis e ao nosso alcance para descobrir.
Quando nos pedem o que ele sofreu ou tem, dizemos que foi uma paralisia
cerebral leve, embora eu particularmente não acredite nisso, pois
cognitivamente ele é preservado, perfeito e acima da média em inteligência e
perspicácia. A paralisia cerebral penso eu, teria também afetado esta condição.
Na verdade, as dificuldades do Davi se resumem a sua condição motora.
Pois bem, toda esta jornada, vivida por nós e pelo Davi, entre
médicos, exames, furos de agulha, e três complexas cirurgias, nos impactaram
profundamente.
Naqueles dias de angustia e preocupação, entediamos que não mais
seria possível nosso sonho de viver na estrada.
Engavetamos esta possibilidade, e nos conformamos com a
possibilidade de escrevermos uma outra história.
Quem disse
que o jeito que tu fazes é certo?
Um dia resolvemos, nesta peregrinação, consultar especialistas do
centro do país, médicos renomados, do Complexo Sara Kubicheck e do Albert Einstein
em SP. Rumamos todos, de avião para SP, especialmente para estas consultas. O
primeiro neurologista geneticista, foi a autoridade que fez o laudo de exame
genético do Davi, um raro e caríssimo exame genético, o que havia de mais
completo no mundo até então. Soubemos que ele fez o laudo no momento da
consulta. Realmente estávamos entre as maiores autoridades. À tarde, já no
Albert Einstein, um Neuro-ortopedista, também renomado, examinou cuidadosamente
o Davi. Após o exame, já todos nós quatro, sentados em frente a sua mesa, ele
foi o primeiro e único médico a ser enfático no diagnóstico de paralisia
cerebral. Ali resolvemos adotar esta pecha para dizer o que o Davi possuía.
Mas o que me marcou pessoalmente foi quando, após conselhos e
orientações, este médico, olha para o Davi e o observa concentrado manuseando o
celular pois jogava algum das dezenas de jogos armazenados no celular, e o
fazia da forma que conseguia, com suas mãozinhas encolhidas e mais enrijecidas
que as nossas, usando dedos diferentes do que usamos, então desvia o olhar para
nós pais e diz:
- Quem disse que a forma dele mexer com o celular é errada, e a
forma como nós mexemos é a certa??? Ele encontrou e encontrará a forma dele de
fazer as coisas. Ele encontrará o seu caminho.
Aquela manifestação, simples, causou algum clique ou algum efeito
em mim. Algo se libertou naquele momento. Até ali eu custava a aceitar a
condição do Davi, entendia que poderia haver alguma possibilidade de rever a
condição das limitações que lhe eram impostas. Eu resistia e não aceitava esta
condição. Este médico com este simples enunciado, me fez ver que não existe
normal. Somos únicos, e não existe certo ou errado. Existe a forma que
encontramos de fazer e cada um, na sua individualidade encontrará a sua.
Comecei após este clique a aliviar o peso da caminhada. O Davi encontraria com
a sua forma de construir alternativas, o seu caminho. A propósito, se pelas
circunstâncias impostas ao Davi ele possui algumas limitações motoras, em
outras, a sua capacidade é ilimitada, especialmente no que se refere a sua
Inteligência e perspicácia.
Desde dia em diante o antigo projeto engavetado, de um dia
alcançar a independência financeira, sair da empresa, morar na estrada, viajar
pelo mundo e educar os filhos nesta realidade, começou a novamente a encontrar
espaços em nossa vida.
Então vem a
Pandemia
A Pandemia, que tantas vidas ceifou, e tantas dificuldades e
traumas nos causou, também nos ensinou. Passamos meses trabalhando remotamente,
junto de nossas famílias.
Neste ambiente de maior contato com os nossos, com a nossa
família, com os nossos livros, com uma certa ociosidade, a vontade de ser livre
cresce de forma avassaladora.
Sempre ideamos um dia sair da empresa e viver na estrada, morando
em um Motor Home, porém a segurança de um emprego, ainda mais na minha
condição, com ótima remuneração, ótimos benefícios, plano de saúde e outras
benesses me colocavam, embora em uma atividade desafiante e que me exigia
sobremaneira, em uma certa bolha de conforto. Sim, vivia em uma bolha. Abrir
mão de tudo isso, para viver na estrada, viajando e educando nossos filhos, era
trocar a certeza pela incerteza, a permanência, pela impermanência. Era abrir
mão de muito, era renunciar tudo isso em nome de uma escolha, e embora eu
sempre reafirmasse a vontade de um dia fazer isso, esse passo era absurdamente
enorme, e não conseguia dá-lo. Foi muito difícil a decisão. Mas me compromissei
em voz alta com ela. Expressei ela a minha amiga Daniela, profissional de RH
que muito nos auxiliou na Empresa e virou grande amiga. Uma vez feito isso,
somente olhei para frente, informando na sequencia meu superior e meu sucessor.
Iniciava ali um processo de sucessão que durou 1 ano e meio.
Sempre digo, que este foi o preço da liberdade, e hoje o pagaria
novamente, se assim fosse necessário.
Sempre estabeleci uma relação boa com os outros agregados de um
cargo como o que exercia, entre eles a vaidade, o status, o poder. Nunca me
apeguei a estes aspectos, pelo contrário, me incomodavam. Abrir mão desses
itens agregados e inerentes ao exercício do cargo foi tarefa fácil, pois sempre
tive consciência que estava em uma atribuição e responsabilidade importante,
mas eu não era este cargo. Estava diretor, não era diretor. Sempre separei o
humano do cargo, aspecto esse, que fazem muitos executivos entrarem em
parafuso. Para mim, esta face de cargos como este, não me atingiam.
Mas a segurança em troca da incerteza, era o que me preocupava,
até o dia da decisão. Depois de expressá-la, um grande peso saiu dos meus
ombros, e comecei ali a curtir um luto. Começava a enterrar um Álvaro, para dar
espaço de nascimento a outro.
Aliás, a família toda começava a ver que, a partir do que a
Pandemia nos condicionava a descobrir, que várias outras coisas e situações
poderiam ser feitas remotamente, desde a educação dos filhos, algo já ideado a
muito tempo, até as fisioterapias do Davi, que nos preocupavam, pois eram
feitas por profissionais. Fora, outros aspectos, como contato com a famílias,
aspectos burocráticos, compromissos, atividades físicas, consultas médicas,
etc. A tecnologia e o uso dela disseminado na pandemia nos encorajaram também a
dar o passo definitivo, rumo a um novo ciclo em nossas vidas.
Enfim, como dito, olhávamos agora para frente, e planejávamos
nossa partida, e nossa mudança para a casa rodante.
Neste período de transição na empresa, além dos aspectos
relacionados a sucessão, havia um processo de amadurecimento do Álvaro na nova
condição, sem profissão, e isso era algo ainda a ser processado, pois entendia
possível com a minha experiência e Know How acumulado na minha profissão, ser
possível atuar como mentor de outros profissionais. Tanto que me capacitei para
isso. Na prática, isso se mostrou mais desafiante e desgastante do que
imaginava. Não gostei de ser mentor. Logo percebi, que assumir alguma outra
atividade, subtrairia vivenciar a experiência que estávamos tendo.
Minha “carreira” como mentor se mostrou infrutífera e me entendi
não capaz de abraça-la.
O Novo Ciclo
se inicia
Então o novo ciclo, agora já fora da empresa, se faz totalmente
presente. Uma situação que incrivelmente ocorreu foi a procrastinação da nossa
partida. Sempre algo novo surgia, que nos fazia adiar o dia do início de nossa
viagem. Desde situações médicas, até uma absurda e ridícula constatação, que
ignorava até ali, pois entendia diferente. Eu não estava habilitado para
conduzir o Yete, nosso Motor Home F4000. E constatei isso, a partir de uma
multa. Pensava, e não só eu, mas também o proprietário anterior, que o Peso e a
capacidade de carga do nosso Motor Home, possibilitava a carteira B, porém a
interpretação da norma, fazia com que o PBT (Peso Bruto Total) do veículo, e
não seu peso efetivo, definisse a classificação da habilitação. 6 mil kg e 6
passageiros, eram os limites para um Veiculo Recreacional permitir a carteira
B. Nosso Yete possuía um PBT de 6,8 toneladas. Aos 45 minutos do segundo tempo
para o início de nossa viagem precisei encontrar datas junto ao Detran para
fazer o curso de Carteira D e passar na prova. Depois de mais de um mês nesta
função que adiou por mais dois meses nossa partida, cuja demora maior foi o
espaço na agenda dos instrutores para iniciar, de forma intensiva (até 3 aulas
por dia, de um total de 20) um “curso” para “inglês e monitor de prova ver”. Uma
ficção, e além da procrastinação imposta, o custo deste processo, e o saco que
era aguentar instruções que na vida real, não tinham aplicação. Mais um stress
agregado a este fato era a possibilidade de tudo isso não dar certo, pois a
infração de conduzir de forma inabilitada era gravíssima, e uma infração
gravíssima, permitiria a mudança de faixa somente daqui um amo. Temendo morrer
na praia de nosso projeto, recorri a justiça. Depois constatei que não teria
sido necessário, pois os órgãos oficiais não efetivaram esta negativa de
possibilidade de renovação da carteira constante da norma.
Humus, a
essência da Terra
Humus, a essência da Terra, ligando os extremos, foi o nome dado a
esta nova fase de nossa vida. A primeira etapa, seria conhecer uma parte do
Brasil, este desconhecido para todos nós. Conhecíamos muito mais nossos
vizinhos países, como Uruguai, Argentina, Chile e Peru, das diversas viagens de
moto ou motor casa, do que nosso continental Brasil. Então, após um ano de
adaptações do Yete, nosso Motor Home, da transição junto a empresa que liderava
e que fiz carreira, e um período de diversas intercorrências que procrastinaram
nossa partida, finalmente em Junho de 2022, partíamos.
Foi uma partida, não partida, pois ainda passaríamos na DHR
Overlander, onde alguns pequenos ajustes precisariam ser feitos no Yete, e
também uma adaptação a Bike triciclo do Davi. Partimos já no final da tarde de
um pré-feriado, e caímos em um Gramado absolutamente congestionada. Era caminho
necessário para chegar a fabrica do nosso amigo Douglas. Um caos que somavam
tudo que não queríamos. Uma cidade gananciosa, que soube competentemente
promover seu posicionamento, mas não soube devolver em infraestrutura o que
recebeu, uma multidão em busca de algo, especialmente em busca de preenchimento
de vazios existências. Uma horda de seres humanos atrás da selfie perfeita que
irá mostrar ao mundo uma vida também perfeita, SQN. Fornecedores, caminhões ou
entregadores, e um Motor Home grande, desajeitado, e incauto no meio de tudo
isso, levando uma família, que está em busca do contrário de tudo isso. Não
gosto de Gramado, mas admiro sua história de sucesso. Aliás, acho Gramado
linda, com suas casas, seus jardins e suas opções, mas infelizmente, um mundo
de fantasia, em nome das maiores possibilidades de faturamento possível hoje
orienta suas decisões. Isso tudo aliando a um mundo de gente preocupada com a
opinião dos outros. Menos em, curtir, mais em mostrar. Não me entendam mal. Não
sou contrário ao sucesso absoluto desta cidade, dos seus empreendedores e
moradores, pelo contrário, já disse, eu os admiro. Também não sou contrário aos
milhares de turísticas que amam e buscam se divertir, curtir e experiência as
diversas possibilidades deste local. Minha crítica está nas camadas mais
profundas dos motivadores de tudo isso.
Chegando finalmente em Canela, após quase duas horas travados e
presos em um trecho de não mais de dois quilômetros que cruza o centro de
Gramado, única opção para quem quer chegar a Canela, aportamos em frente a casa
do nosso amigo Douglas, já tarde de uma noite que seria muito fria.
Tínhamos mais uma missão neste dia, triste, mas necessária.
Precisávamos encontrar um novo lar para nossa querida Minci, nossa gata
companheira, amiga e carinhosa. A Minci era uma fiel companheira com poderes
sensoriais. Aliás, dizem que os gatos são seres de energia. E uma ocasião,
quando Davi, voltando para casa após uma trabalhosa cirurgia de quadril, onde
ficou na UTI e no hospital por uma semana, com faixas e talas que imobilizam as
duas pernas, já sentado no sofá da sala, nossa Minci sobe o sofá, tateia com
seus nariz e bigode as pernas do pequeno Davi, para na sequencia se aninhar
sobre as pernas. Nunca antes ela havia feito isso, mas naquele dia, ela sobe e
se coloca sobre o local do corpo onde o Davi sofreu a cirurgia. Essa e tantas
outras manifestações que tínhamos uma companheira diferente, e que amávamos,
fez desta missão, algo doloroso.
Não seria possível submeter a Minci a esta viagem. Entendemos que
o processo, a convivência, os cuidados necessários, a burocracia nas fronteiras
de outros países, onerariam ainda mais um projeto, que pelas características e
participantes, já era bastante complexo.
Mas escolhemos a dedo a nova família, pois o Douglas e sua esposa
Simone são dois humanos que amam muito os animais, tanto que acolheram já
alguns desamparados em sua casa, sendo a principal a Lola, uma vira-lata que
tem enorme ciúmes do Douglas. A Simone além de amar cães, ama também gatos. E
não foi difícil para a Minci e eles logo se entenderem. A Minci ainda levaria
um ano para estar completamente à vontade com ambos, apesar do acolhimento. Para
nós restou a saudade de uma grande companheira.
No dia seguinte, o mundo desabou sobre Canela, e a chuva
torrencial não deu trégua. Foi difícil dar seguimento aos detalhes que
queríamos lá na DHR, entre eles uma adaptação para a bike do Davi, que
consistia em podermos diminuir a altura do assento. Apesar de bem-feita a
adaptação, nunca conseguimos utiliza-la, pelas dimensões do Davi. Ele não alcançava
os pedais. Talvez ainda estivéssemos presos a síndrome do nunca está bom, ou em
busca do momento, ou equipagem perfeita. Aliás, essa síndrome que faz muitos bem-intencionados
sonhos e projetos, nunca acontecerem.
Obs: escrever uma crônica sobre esta síndrome do momento perfeito
(o ótimo sendo inimigo do bom);
Fechamos esse dia frio e chuvoso com um “entrevero” a moda
Douglas, em sua casa e com amigos, também clientes da DHR.
Voltamos a estaca
zero.
No dia seguinte, a síndrome nos atacou. Decidimos, ao invés de
seguir viagem, voltar para Rolante, onde a Adelaide queria lavar as roupas que
molharam na intensidade da chuva do dia anterior. Para mim foi extremamente frustrante,
e esses impasses e a busca, especialmente por parte dela do momento perfeito,
tem sido motivos de brigas.
Para mim custou muito caro sair da empresa, e agora parece que não
havia jeito de finamente estarmos na estrada. Pareciam aqueles pesadelos onde
você corre e não sai do lugar. Quando somente possuíamos as férias para rodar, tínhamos
que nos programar dentro daqueles 30 dias, e a otimização de tempo e
aproveitamento era muito maior. Porém agora que temos tempo, a procrastinação
tomou conta de nossa dinâmica. E isso tem me feito muito mal. Muita ansiedade e
stress. O tempo está passando e as crianças crescendo. Tudo isso nos mostra o
quanto ainda temos que mudar nosso mindset, nossa forma de nos relacionarmos
com as coisas, com o tempo e com as nossas referências. Morar em um Motor home
deve mudar necessariamente a dinâmica de vida.
Enfim a
Jornada Humus finalmente inicia.
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