Dia 153 - 16/11/22 - Quarta-feira - União dos Palmares (Serra da Barriga) à Dunas do Marapé

Logo cedo, eu e Adelaide, deixando os meninos dormirem no Yete, fomos ver a feira de produtores. Várias ruas das imediações da "praça" que estávamos ontem, agora repletas de bancas, verduras e os mais diversos produtos, de especiarias a quinquilharias. O Fato é que estas feiras livres, mercados públicos municipais são verdadeiros patrimônios culturais desta gente aqui do Nordeste. Caminhamos um pouco, compramos algumas frutas e retornamos, para em seguida tomar nosso café e quando 8:00 hrs, irmos atrás de informações sobre guia e transporte para a Serra da Barriga, local onde um dia existiu o famoso Quilombo de Palmares. Fui até o museu Maria Mariá, eminente historiadora da terra que foi responsável por diversas lutas e por colecionar um importante acervo de objetos, fotografias e documentos da região e também pela preservação e proteção da Serra da Barriga, local do Quilombo. Foi ela também a propositora da alteração do nome da cidade para União dos Palmares. Encontramos o guia Carlos que se disponibilizou imediatamente e questionado sobre condução lá para o topo da serra, disse que poderíamos ir com o Motor home. Antes fui alertado pelo amigo Amauri da inclinação da serra e de que não seria uma boa ideia ir. Questionei mais uma vez sobre as condições da estrada e inclinação, e mais uma vez, me disseram ser "tranquilo", pois ônibus também sobe. Resolvi então concordar em ir, sem pesar que sim, podemos subir, mas o desafio estaria na subida. Porém este aspecto somente me veio a mente quando já estávamos em curso. Começamos a escalada e apesar do ótimo asfalto, realmente o Amauri tinha razão, quanto a severidade da inclinação. Comecei a ficar preocupado. O Yete, pesado, subia a 10, 20 p/h em primeira marcha. Enfim, chegamos ao topo, e a preocupação quantos aos riscos da descida me acompanharam durante toda a visita ao Parque. O Parque Zumbi de Palmares, atualmente patrimônio histórico do Brasil e América do Sul, na verdade é o placo do principal mocambo (local de agrupamento dos negros fugidos) dos diversos instalados na região. O Mocambo dos Macacos, foi a "capital" dos mocambos da região. Lá viveram não só negros, mas também índios e brancos perseguidos. O que hoje lá podemos ver são edificações que reproduzem, a partir de pesquisas, como se organizava a cidade dos negros fugidos. Há muito ainda a ser descoberto, pois as principais fontes históricas, se referem aos perseguidores diversos dos quase 100 anos de existência do Quilombo. Me chamou a atenção que a criadora e organizadora e quem sabe a primeira rainha de Palmares Aqualtune não seja lembrada. Lendo sobre este fato histórico, o texto que julguei mais isento é de Laurentino Gomes, do Livro 1, "Escravidão", que transcrevo abaixo. Terminada a visita e depois de dois colares feitos por um instrutor de capoeira lá na Serra foram comprados para as crianças, iniciamos a descida. Testei os freios motores antes e estavam ok. Desci com muitíssima moderação e super lentamente, usando freio motor, freando também com o motor e também segurando no freio do caminhão, que é frágil. Somente ele seria uma temeridade. Deixamos Carlos, nosso guia na cidade e resolvemos seguir viagem. Infelizmente não haveria possibilidade de falar com a senhora Socorro e seu querido sobrinho Rian. Encostei o Yete, logo após a cidade de União, no acostamento ao lado de uma lavoura para o descarte de detritos, com vista para a Serra da Barriga. Ali fiz uma foto e promovi um Quiz com a pergunta de qual era aquele lugar com posterior dicas. Constatei ali a ignorância das pessoas quanto a história e ao local. Nosso destino seria Dunas de Marapé, onde o Artur deixou seu amigo Vitor, e a ideia era um reencontro antes da descida para o Sul. As estradas que pegamos neste trecho estavam ótimas, incluindo a BR 101, duplicada. Almoçamos em um Posto em Messias, após duas anteriores tentativas de encontrar diesel S500. Não só não havia, como faltava por algum motivo o Diesel S10 também Neste terceiro posto, onde encontramos o Yete na sombra, finalmente encontramos o Diesel que necessitávamos. Comecei a ficar preocupado com esta falta. Encontramos a partir da entrada da praia do Francês o trecho que fizemos na subida para o Norte, incluindo os locais que reencontramos Ulisses e onde trocamos o pneu que furamos após Jequiá. A praça de Dunas que havíamos ficado na subida estava agora gramada. A torneira de água quebrada e o que ficou no cano colado, nos obrigando para adaptar para podermos pegar água. Não mudei minha impressão das pessoas deste povoado. Achei-os frios e nada solidários. As crianças são queridas e brincaram e convidaram o Artur para brincar. Seu amigo Vitor, também não recebeu (minha opinião) com entusiasmo (diferente do Artur) a vida do amigo. Somente a noite se encontraram. Neste meio tempo o Artur jogou vôlei com outros amigos. Quando solicitei já tarde que entrasse estava com os pés pretos da areia preta do lugar, de tanto brincar. 

Texto de Laurentino Gomes sobre o Quilombo de Palmares:

NO DIA 26 DE FEVEREIRO DE 1645, enquanto nos sertões de Angola, do outro lado do Atlântico, a rainha Jinga infernizava a vida dos portugueses, uma expedição militar partia da cidade de Salgados, litoral de Alagoas, e começava a lenta e monótona subida da Serra da Barriga. Dirigia-se ao Quilombo dos Palmares, o maior, mais importante e mais duradouro reduto de escravos fugitivos no Brasil colônia. Seu comandante era um padre que, apesar da batina, carregava a fama de ser um homem violento, cruel e sanguinário. Perito em guerra de emboscadas, o capitão João Blaer, pároco de Vreeswijek, aldeia da província de Utrecht, na Holanda, chegara ao Brasil em 1629, como capelão, no início da ocupação holandesa do Nordeste brasileiro. Naquele mesmo ano de 1645, alguns meses após a marcha contra Palmares, seria preso pelas forças brasileiras de André Vidal de Negreiros num ataque surpresa ao engenho Casa Forte, ocupado pelos holandeses, a uma hora de marcha do Recife. Dias depois, a caminho da cadeia na Bahia, Blaer acabaria assassinado a sangue frio pelos seus carcereiros, como vingança pela “desumanidade” que demonstrara nos combates até então.[1] Para chegar a Palmares, padre Blaer e seus comandados teriam de vencer uma paisagem íngreme, isolada, pouco conhecida, de difícil acesso. Montanhas escarpadas e desfiladeiros se precipitavam até o fundo de vales protegidos por um “cordão de mata brava”, repleto de cipós, estrepes e animais perigosos. “Os espinhos são infinitos, as ladeiras muito precipitadas”, queixava-se um relatório da época. Lutava-se contra “a fome do sertão, o inacessível dos montes, o impenetrável dos bosques”, segundo outro documento. O nome Palmares devia-se à abundância de palmeiras de diversas espécies presentes na região. A pindo balançava suas plumas acima das copas frondosas das sapucaias e das embiras. A catolé, de pequeno porte e caule coberto de farpas, dominava o sub-bosque e tornava a caminhada na mata especialmente perigosa. Nas várzeas, alagadas e intransitáveis nos períodos de chuvas torrenciais, estavam as terras mais férteis da então capitania de Pernambuco, irrigadas por uma complexa rede de riachos e rios caudalosos, como o Ipojuca, o Sirinhaém, o Una, o Paraíba, o Camaragibe e o Jacuípe. O solo escuro carregado de húmus (um composto de matéria orgânica) conhecido como massapê era também responsável pela maior concentração de escravos em todo o continente americano. Esses nativos eram forçados a trabalhar de sol a sol e sob a ameaça do chicote nas centenas de engenhos de açúcar que despontavam na Zona da Mata pernambucana, na época sob ocupação dos holandeses. A expedição de 1645 era apenas mais uma entre dezenas de outras lançadas contra Palmares ao longo de todo o século XVII. E, também dessa vez, a tarefa logo se revelou impossível. Ao se aproximarem do quilombo, Blaer e seus soldados foram surpreendidos pelas táticas de guerrilha empregadas pelos escravos foragidos, típicas das manobras usadas em Angola pelos guerreiros jagas e ingambalas da rainha Jinga contra os portugueses. Quando os holandeses atacavam, os quilombolas recuavam e sumiam na mata sem deixar traço algum de sua presença. Se, porém, paravam para dormir, se refrescar ou comer, eram alvos de saques e assaltos relâmpagos. Armadilhas instaladas no chão da floresta, repletas de varas de madeira pontiagudas e camufladas sob uma cobertura de ramagens e folhas secas podiam surpreendê-los a qualquer momento. Essa situação desgastante perdurou por pouco mais de um mês. Ao final desse período, já exauridos e sem recursos, os holandeses contentaram-se em destruir apenas um pequeno núcleo do quilombo e recuaram. Os feridos foram abandonados pelo caminho, uma vez que os soldados sobreviventes não tinham forças para carregá-los. O próprio Blaer acabou sendo vítima das dificuldades da campanha. Gravemente enfermo, foi substituído pelo tenente Jurgens Reijimbach, a quem caberia escrever o diário da expedição, hoje um dos documentos mais preciosos e detalhados sobre Palmares. Alguns trechos do relato de Reijimbach:[2] A 18 de março ganhamos o cimo de um monte, que era alto e íngreme, e sobre o qual encontramos água para beber; [...] em seguida chegamos ao velho Palmares que os negros haviam deixado desde três anos, abandonando-o por ser um sítio muito insalubre e ali morrerem muitos dos seus; este Palmares tinha meia légua [aproximadamente três quilômetros] de comprido e duas portas; a rua era da largura de uma braça [cerca de dois metros] [...] A 19 pela manhã caminhamos meia milha [oitocentos metros] e chegamos ao outro Palmares, onde [...] quatro holandeses, com brasilienses e tapuias, incendiaram-no em parte, pelo que os negros o abandonaram e mudaram o pouso para dali a sete ou oito milhas [entre onze e treze quilômetros, respectivamente], onde construíram um novo Palmares igual ao que precedentemente haviam habitado. [...] A 20, depois de caminhar quatro boas milhas [4,5 quilômetros], passando alguns montes e rios [...], encontramos todas as meias horas mocambos feitos pelos negros quando deixaram o velho Palmares pelo novo, situado ao leste e sudeste do primeiro. [...] Ao amanhecer do dia 21 chegamos à porta ocidental de Palmares, que era dupla e cercada de duas ordens de paliçadas; arrombamo-la e encontramos do lado interior um fosso cheio de estrepes em que caíram ambos nossos cornetas; não ouvimos ruído algum senão o produzido por dois negros, um dos quais prendemos, junto com a mulher e o filho [...]; ainda mataram nossos brasilienses dois ou três negros no pântano vizinho; disseram ainda os negros pegados que seu rei sabia da nossa chegada por ter sido avisado das Alagoas; um dos nossos cornetas, enraivecido por ter caído nos estrepes, cortou a cabeça a uma negra [...]. Este Palmares tinha igualmente meia milha de comprido [...]; as casas eram em número de 220 e no meio delas erguia-se uma igreja, quatro forjas e uma grande casa de conselho; havia entre os habitantes toda a sorte de artífices e o seu rei os governava com severa justiça, não permitindo feiticeiros entre a sua gente; quando diversos negros fugiram, crioulos foram enviados atrás deles, que foram capturados e mortos, de modo que o terror agora reina entre eles, especialmente entre os angola; o rei também tem uma casa distante dali duas milhas [pouco mais de três quilômetros] com uma roça muito abundante, a qual casa fez construir ao saber da nossa vinda, pelo que mandamos um dos nossos sargentos com vinte homens a fim de prendê-lo; mas todos tinham fugido [...]. A 22 pela manhã saiu novamente um sargento com vinte homens a bater o mato, mas apenas conseguiram pegar uma negra coxa chamada Lucrécia [...]; neste dia a nossa gente queimou para mais de sessenta casas nas roças abandonadas; o caminho deste Palmares era margeado de aleias de palmeiras que são de grande préstimo aos negros, porquanto em primeiro lugar fazem com elas as suas casas, em segundo as suas camas, em terceiro abanos com que abanam o fogo, em quarto comem o exterior dos cocos e também os palmitos; dos cocos fazem azeite para comer e igualmente manteiga, que é muito clara e branca, e ainda uma espécie de vinho; nestas árvores pegam uns vermes da grossura dum dedo, os quais comem, pelo que têm em grande estima estas árvores [...]. Este era o Palmares grande de que tanto se fala no Brasil. A documentação histórica sobre Palmares é relativamente escassa. Inclui diários de campanha militares, como o do capitão Blaer, trocas de cartas entre autoridades coloniais e a Coroa portuguesa, memórias e depoimentos de oficiais, soldados e moradores da região — e tudo sempre do ponto de vista dos brancos. Nada se sabe a partir de depoimentos ou relatos dos próprios quilombolas, o que torna impossível saber com certa precisão quem eram eles, o que pensavam, como agiam ou como se comportavam. Na falta de pistas concretas, muitos aspectos da história do mais famoso quilombo do Brasil permanecem ainda mergulhados nas sombras, a desafiar os historiadores e outros estudiosos do tema. As incertezas a respeito de Palmares remontam a sua origem. Acredita-se que tenha começado com a fuga de algumas dezenas de escravos de um único engenho no sul de Pernambuco no final do século XVI. De início, seria constituído apenas de homens, que depois passaram a arregimentar mulheres nas vizinhanças por meio de raptos ou convencendo-as a juntarem-se a eles na fuga. O movimento ganhou fôlego durante a guerra entre portugueses e holandeses pelo controle do Nordeste brasileiro — repetindo um padrão observado em outros territórios da América, em que o vácuo de poder resultante de desentendimentos e conflitos entre os brancos estimulava a rebeldia e a fuga dos cativos negros. Em meados do século XVII, Palmares já seria uma confederação de dezoito mocambos espalhados por uma vasta área que se estendia da região do Cabo de Santo Agostinho, ao sul do Recife, até o curso inferior do rio São Francisco, atual divisa de Alagoas com a Bahia. Seu quartel-general funcionaria na localidade de Macaco, nos contrafortes da Serra da Barriga, entre os atuais municípios de União dos Palmares e Viçosa. Outro enigma no estudo de Palmares diz respeito aos seus costumes e à procedência dos seus habitantes. Há dúvidas de que pertencessem a uma única etnia ou povo na África. Alguns historiadores defenderam a tese de que seria quase uma réplica de um típico reino africano nos sertões de Pernambuco, com características semelhantes ao reino dos jagas de Angola. Isso seria verdade apenas em parte. O mais provável é que sua composição tivesse mudado ao longo dos anos, de acordo com as regiões da África que mais forneciam escravos para o Brasil em determinados períodos. Além de escravos negros, incluía indígenas, brancos foragidos da lei e até mesmo “um mouro (muçulmano árabe ou berbere), que para eles fugiu”, segundo registrou, em 1694, o governador Melo e Castro. Em 1644, o holandês Rodolfo Baro aprisionou sete índios e “alguns mulatos menores”. Curiosamente, mulatos e índios também compunham quase a totalidade das forças empregadas pelo mesmo Rodolfo Baro nesse ataque ao quilombo.[3] Há notícias de batuques e danças ao som de tambores, que podiam ser ouvidos a quilômetros de distância, e de rituais religiosos ao estilo tradicional africano. Apesar disso, numa de suas expedições militares, os portugueses encontraram uma Igreja Católica com imagens do Menino Jesus, de Nossa Senhora da Conceição e de São Brás.[4] Relatos como esse sugerem que Palmares foi se transformando e se adaptava às crenças e aos costumes da América Portuguesa num processo muito semelhante ao que sofreram todos os escravos africanos e seus descendentes que chegaram ao Brasil. Os quilombolas viviam da caça, da pesca e da coleta de frutas — jaca, manga, laranja, lima-da-pérsia, melancia, mamão, coco, banana, goiaba, entre outras, todas muito abundantes na região. Criavam porcos e galinhas. Extraíam e processavam óleo de dendê. Tinham roças para o cultivo de milho, mandioca, feijão, batata-doce e cana-de-açúcar. Das folhas e do tronco das palmeiras construíam choupanas e fabricavam chapéus, esteiras e vassouras. Também da fibra das árvores faziam roupas, agasalhos e tecidos de uso doméstico. Parte desses produtos era vendida ou trocada por armas e munições nas comunidades vizinhas. Teriam desenvolvido ainda alguns ofícios mecânicos, como comprovam as quatro forjas encontradas pelos holandeses em 1645, usadas na fabricação ou no conserto de ferramentas de ferro, como facas, foices e machados, além de pontas de flechas e lanças. Com frequência praticavam roubos e saques nos vilarejos e engenhos vizinhos. Fugas eram formas de resistência à escravidão bastante comuns em todo continente americano. E eram ainda mais frequentes do que as rebeliões, em geral esmagadas rapidamente e sem piedade pelo sistema escravagista. Ao passar por Salvador em 1676, o francês Gabriel Dellon assustou-se com a quantidade de cativos africanos existentes na Bahia, segundo ele sempre dispostos à rebelião e à fuga devido aos maus-tratos que lhes dispensavam seus donos: Vendidos como animais, são comprados às centenas pelos donos de grandes propriedades, que os submetem ao controle de um capataz — na maioria das vezes, pior do que o próprio senhor. [...] Os maus-tratos [...] obrigam-os por vezes a fugir para o mato e a viver aí pilhando tudo o que encontram pela frente, vingando-se de certo modo dos tormentos que lhes foram impostos.[5] A palavra kilombo, transcrita para o português como quilombo, vem do quimbundo, um dos idiomas falados em Angola, e originalmente significava acampamento, arraial, união ou cabana. Na região de Cassanje, em Angola, designava também acampamento militar e a sociedade de iniciação dos guerreiros jagas aliados da rainha Jinga. No Brasil, virou sinônimo de reduto de escravos foragidos. Havia centenas deles em todo o país, dos pampas gaúchos às florestas do rio Trombetas, no Pará. Só em Minas Gerais foram registrados pelo menos 160 entre 1710 e 1798. Nos primeiros trezentos anos do período colonial, esses refúgios geralmente estavam situados em regiões ermas, de difícil acesso, como terrenos alagadiços ou serras cobertas de florestas. No século XIX, porém, muitos deles localizavam-se em regiões próximas dos grandes centros urbanos, caso da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, e do bairro do Jabaquara, em São Paulo. Às vezes cultivavam boas relações com os vizinhos. O Quilombo do Barba Negra, no Rio Grande do Sul, na primeira metade do século XVIII, fornecia mão de obra para os pecuaristas locais durante os períodos de trabalho mais intenso e diversas vezes escapou da destruição porque os moradores preveniram os quilombolas da chegada das autoridades. O que tornou Palmares diferente de todos os demais quilombos da história da escravidão no Brasil foi a sua dimensão territorial e a extraordinária capacidade de resistência de seus habitantes — o que também os mantém ainda hoje como símbolos da luta dos afro-brasileiros pela liberdade e pelos seus direitos. “Esses negros são robustos e sofredores de todo trabalho, por uso e por natureza”, dizia uma carta de 1687. “São muitos em número, e cada vez mais. Não lhes falta destreza nas armas, nem no coração ousadia.” Em 1681, um grupo de moradores de Pernambuco reclamou, de forma desanimadora: “As nossas campanhas com os negros de Palmares não tem tido o menor efeito. Eles parecem invencíveis!”.[6] Durante todo o século XVII, a Coroa portuguesa moveu uma perseguição implacável contra o quilombo. Ao todo, foram enviadas dezessete diferentes expedições militares, sendo quinze luso-brasileiras e duas holandesas.[7] No período que precedeu a destruição final do refúgio, entre 1672 e 1694, os quilombolas resistiram a nada menos que um ataque a cada quinze meses. Estima-se que, no total, as operações contra Palmares tenham custado aos cofres portugueses mais de 400 mil cruzados, três vezes o orçamento das oito capitanias brasileiras em 1612.[8] Essa ofensiva tão grande e prolongada ocorreu não porque Palmares fosse um reino poderoso ou apresentasse qualquer ameaça real do ponto de vista militar, mas porque a sua simples existência desmentia e fragilizava os alicerces da própria ordem escravagista do Brasil colonial. Aceitar Palmares significaria admitir que os cativos teriam algum espaço, ainda que precário, de resistência à brutalidade dos seus senhores. Palmares assustou os moradores e as autoridades da colônia a tal ponto que, em 1608, o governador-geral Diogo de Menezes chegou a propor à Coroa portuguesa o fim da escravidão africana na capitania de Pernambuco, alegando que os quilombolas eram mais difíceis de vencer do que os índios. A sugestão foi rejeitada. Meio século depois, após o fracasso de inúmeras expedições militares, ganhou corpo outra proposta — a de negociação com os rebelados e fugitivos. Entre 1661 e 1664, o governador Brito Freire aventou a possibilidade de alforriar todos os quilombolas em troca do fim dos conflitos.[9] Segundo a política de apaziguamento proposta por ele, os quilombolas e seus descendentes ganhariam a liberdade assim como a posse da terra que habitavam. Em contrapartida, se comprometiam a não aceitar mais nenhum escravo fugido. Os que ali chegassem por seus próprios meios seriam imediatamente devolvidos aos seus senhores. Também essa ideia fracassou e as hostilidades logo recomeçaram.[10] A essa altura, do ponto de vista dos colonos e da Coroa portuguesa, Palmares tinha de ser aniquilado para que não servisse de exemplo às centenas de milhares de escravos que naquela época já compunham a maioria da população brasileira. Em carta ao rei de Portugal em 2 de julho de 1691, o jesuíta Antônio Vieira alertava que a eventual vitória e continuidade do Quilombo dos Palmares seria “a total destruição do Brasil” porque serviria de mau exemplo para os demais escravos africanos: Sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e total [...]. Conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro mais que o próprio corpo.[11] Em 1678, catorze anos antes da carta de padre Vieira, o capitão-mor Fernando Carrilho havia declarado Palmares oficialmente destruído ao fim de mais cinco meses de combates (a sexta operação militar desde o início daquele século). Na verdade, o quilombo continuava forte e irredutível como sempre fora. Dessa vez, porém, Carrilho retornava da Serra da Barriga com um novo trunfo: suas tropas tinham capturado vários chefes, incluindo alguns filhos, netos e outros parentes de Ganga Zumba, líder supremo dos mocambos confederados nas florestas de Alagoas. O governador Pedro de Almeida decidiu usá-los como reféns para forçar os quilombolas a uma nova rodada de “negociações de paz”. Ou seja, eles só seriam libertados mediante determinadas condições. Pressionado, Ganga Zumba aceitou a proposta, que foi contestada por diversos outros chefes, entre eles o seu próprio sobrinho, Zumbi. Dessa forma, estavam plantadas as sementes da discórdia em Palmares, o que levaria ao seu total aniquilamento nas duas décadas seguintes. Ganga Zumba era filho da princesa Aqualtune e vivia com três mulheres — duas negras e uma mulata. Teria tido quatro ou cinco filhos e dezenas de netos. Dois de seus filhos, Zambi e Acaiene, estavam entre os prisioneiros feitos por Fernando Carrilho em 1777. Segundo um relatório dessa expedição, Ganga Zumba morava no Mocambo do Macaco, a capital de Palmares, encravada nas encostas da Serra da Barriga. Era protegida por uma cerca de quase cinco quilômetros de extensão, construída com galhos secos, ramagens e troncos de árvores tombadas, e intercalada por armadilhas de estrepes pontiagudos e buracos através dos quais os escravos foragidos faziam disparos de lanças, flechas e espingardas. Esse mocambo, chamado de Cerca Real do Macaco, tinha sido atacado e destruído por sucessivas campanhas militares, mas sempre renascia dos escombros. Ali, Ganga Zumba, que a essa altura já seria um homem idoso, presidia as reuniões do conselho composto pelos chefes dos outros mocambos, incluindo seus sobrinhos Andalaquituche e Zumbi. Também participava dessas reuniões o irmão do rei, Ganga Zona, que, segundo um relatório do governador Pedro de Almeida, era “um maioral dos negros”. Zumbi era o “general de armas” do quilombo, ou seja, seu principal comandante militar. Mancava de uma perna, ferida a bala num confronto em 1675. Na tarde de 18 de junho de 1678, sábado, um enorme alvoroço chamou a atenção dos moradores do Recife. Três filhos de Ganga Zumba, um deles a cavalo “por estar ferido de guerra”, entravam na cidade à frente de um grupo de negros “com os seus arcos e flechas, um deles com uma arma de fogo, quase inteiramente nus, com os órgãos genitais cobertos de panos ou de peles”, segundo documento da época. Era a comitiva do rei de Palmares incumbida de negociar a paz com os portugueses. Foram recebidos pelo novo governador, Aires de Souza Castro, diante do qual toda a companhia se prostrou batendo palmas, em sinal de vassalagem. As negociações foram mais rápidas e bem-sucedidas do que se imaginava.[12] Pelo chamado “Acordo do Recife”, Ganga Zumba, promovido ao posto de mestre de campo, tornava-se oficialmente vassalo do rei de Portugal e passaria a governar a partir de um território situado na região de Cucaú, na atual divisa de Alagoas com Pernambuco, assistido por dois padres designados pelo governador. Os parentes do rei capturados na expedição de Fernando Carrilho seriam imediatamente libertados. Todos os negros nascidos em Palmares teriam direito à alforria e autorização para continuar a comercializar com os vizinhos do quilombo. No dia 20, uma missa solene, com a presença dos embaixadores negros, foi celebrada na matriz da capital pernambucana em ação de graças pela paz acordada entre as partes. O tratado de paz assinado no Recife pela embaixada de Ganga Zumba marcou o início de uma nova fase na história de Palmares, a derradeira, mais épica e mais mítica de todas. Zumbi e outros chefes de mocambos recusaram-se a aceitar os termos da negociação. Tinham fortes razões para isso. A tinta usada na assinatura do tratado ainda estava fresca quando o governador Souza e Castro começou a distribuir parte das terras de Palmares para dezesseis pessoas que tinham participado e financiado as campanhas contra os negros. Ao contrário do que prometiam as autoridades, um forte destacamento militar estacionado em Alagoas, pronto para atacar o quilombo, não foi imediatamente desmantelado.[13] Tudo isso levou Zumbi e seus aliados a suspeitar que poderiam estar a caminho de uma armadilha fatal tão logo desmobilizassem suas próprias forças. Souza e Castro enviou ao encontro deles o irmão do rei, Ganga Zona, numa tentativa de convencê-los a aderir ao acordo. Deu-lhes quatro meses para depor armas e sujeitar-se à Coroa portuguesa, sob pena de lhes fazer uma “guerra sem quartel”, ou seja, uma perseguição sem trégua. Foi inútil. Zumbi e seus combatentes internaram-se nas matas, dispostos a resistir até o fim. No refúgio do Cucaú, Ganga Zumba morreu envenenado, supostamente a mando do sobrinho. Seus seguidores, que começavam a aderir aos chefes de mocambo rebeldes, foram atacados pelos portugueses, reescravizados e distribuídos para os fazendeiros das imediações. Em poucos meses, toda a região estava novamente em chamas. A tarefa de comandar a destruição de Palmares caberia a um dos mais notáveis aventureiros da história do Brasil, o coronel, mestre de campo e bandeirante Domingos Jorge Velho. Mameluco, descendente de portugueses, tapuias e tupiniquins, nascido em Santana do Parnaíba, era o chefe de um bando composto por mais de mil homens que passara a vida matando e capturando índios nos sertões do Brasil. Segundo testemunhas da época, mal sabia falar português. Preferia se comunicar na língua geral dos índios tupi-guarani — como todos os paulistas até o começo do século XVIII. “Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado”, relatou o bispo de Olinda, dom Francisco de Lima, que com ele se encontrou em 1697. “Quando se avistou comigo, trouxe um intérprete, porque nem falar português sabe nem se diferencia do mais bárbaro tapuia.” Na última década do século XVII, fazia dezesseis anos que Jorge Velho estava acampado no vale do rio Poti, interior do Piauí, em terras indígenas que haviam sido “tomadas ao gentio bravo e comedor de carne humana”, segundo sua própria definição. Seu exército particular era composto por gente de todas as raças e cores, incluindo brancos, caboclos, mulatos e 1,3 mil índios armados de arcos e flechas. 

Destemidos, briguentos e insubmissos por natureza, os bandeirantes paulistas usavam chapelão de abas largas, barba, camisa e ceroulas, e caminhavam descalços ou, para atravessar os baixios e alagados, usavam botas de cano alto.[14] Era uma estirpe vista com reservas e preocupação pelas autoridades portuguesas. Mesmo depois da derrota final de Palmares, Caetano de Melo e Castro, governador de Pernambuco entre 1693 e 1699, definia Domingos Jorge Velho e seu bando, responsáveis pela façanha, como “gente bárbara, indômita e que vive do que rouba”. Segundo ele, não deveriam ser autorizados a se fixar na região do antigo quilombo, como reivindicava Jorge Velho, caso contrário “experimentarão as capitanias vizinhas maior dano em seus gados e fazendas que aquele que lhe faziam os [...] negros alevantados”. Ou seja, no seu entender, os paulistas eram gente ruim, pior e mais indesejáveis do que os próprios quilombolas que haviam derrotado.[15] Essa era uma opinião compartilhada por inúmeras autoridades coloniais. Em 1662, um governador escreveu que São Paulo era um antro de desertores e criminosos que ali procuravam esconderijo porque tinham a certeza de nunca serem apanhados pelas autoridades. Em 1692, outro governador afirmava que a reforma monetária do ano anterior tinha sido um sucesso no Brasil inteiro, “menos em São Paulo, onde não se conhece que há Deus, nem lei, nem justiça, nem obedecem a nenhuma ordem”. Descrição semelhante aparece numa carta de autoria de dom João de Lencastre, de 1700, segundo a qual os paulistas eram “gente de natureza vária, a maior parte dela criminosa, e sobretudo amantíssima da liberdade em que se conservam há tantos anos”. Na mesma época, porém, o procurador da Fazenda em Lisboa afirmava que os paulistas eram também “a melhor ou a única defesa que têm os povos do Brasil contra os inimigos do sertão, porque só eles são acostumados a penetrá-lo, passado fome, sede e muitos outros contrastes”. Era exatamente esse o argumento usado por João da Cunha Souto Maior, governador da capital de Pernambuco entre 1685 e 1688, ao justificar em carta ao rei dom Pedro II de Portugal, a decisão de convidar Domingos Jorge Velho para o assalto final contra Zumbi dos Palmares e seus guerreiros: “Por estes homens serem os verdadeiros sertanejos, [...] os roguei para esta conquista dos Palmares”. Antes de aceitar a missão, Domingos Jorge Velho negociou uma série de condições com os dois representantes do governador que foram ao seu encontro no Piauí. A administração colonial teria de lhe dar todas as armas e munições de que necessitasse. Os paulistas receberiam como doação da Coroa parte das terras conquistadas no quilombo, mais um quinto de todos os escravos capturados nos combates. Os demais fugitivos seriam devolvidos aos seus donos originais, que, no entanto, teriam de pagar ao bandeirante um determinado valor, a título de reembolso das despesas. Nem o governador nem o coronel poderiam “perdoar” os quilombolas. A ordem seria, portanto, matar, destruir, arrasar Palmares sem dó nem piedade. De antemão, porém, a Coroa portuguesa anistiava todos os paulistas por eventuais crimes cometidos durante a campanha militar. Por fim, o governador dava poderes a Jorge Velho para prender qualquer morador da capitania, fosse branco, mulato ou negro, suspeito de prestar ajuda aos escravos fugitivos.[16] Para chegar a Palmares, Domingos Jorge Velho andou cerca de seiscentas léguas (quase 4 mil quilômetros) “pelo mais áspero caminho, agreste e faminto sertão do mundo”, segundo seu próprio relato. Era, nas suas palavras, a jornada “mais trabalhosa, faminta, sequiosa e desamparada que até hoje houve no dito sertão, e quiçá jamais haverá”. Repetia desse modo a saga de centenas de outros guerreiros que haviam se lançado contra o quilombo nos cem anos anteriores. Em 1667, o alferes João de Montes contava ter padecido de “grandes fomes, por falta de sustento”, chegando a “comer raízes de árvores, depois de escalar serras e abrir picadas no mato”. Em 1679, o soldado Manuel Roiz de Sá experimentara “grandes trabalhos, fomes e sedes”. Outro soldado, Eusébio de Oliveira Monteiro, lamenta-se em 1684 das “fomes e misérias” que sofrera. Sebastião Pimentel, um dos homens de Domingos Jorge Velho, afirmava ter andado mais de trezentas léguas (2 mil quilômetros) “por caminhos e matos muito agrestes, padecendo insuportáveis trabalhos”, e sobrevivendo de ervas e raízes do mato. Ao se aproximar da Serra da Barriga em dezembro de 1692, Jorge Velho decidiu evitar confrontos diretos com os guerreiros de Zumbi. Em vez de batalhas frontais, bloqueava as aldeias dos quilombolas, capturava pessoas isoladas, sabotava as trilhas e passagens, incendiava roças, envenenava poços e fontes d’água. Procurava vencer os adversários pelo cansaço e pela fome.[17] A estratégia, muitas vezes empregada nas campanhas de captura dos índios no interior do Brasil, deu resultado. Exaurido pelo assédio dos paulistas, Palmares caiu no prazo de pouco mais de um ano. Em 23 de janeiro de 1694, após catorze meses do sítio e de diversas tentativas frustradas, os bandeirantes iniciaram um ataque avassalador às últimas defesas de Zumbi. Na operação, Domingos Jorge Velho mobilizou cerca de 6 mil homens bem armados e municiados, inclusive com canhões e outras peças de artilharia. Apenas parte deles pertencia ao seu bando original trazido do Piauí. O restante era composto por reforços despachados da Bahia, do Rio Grande do Norte e de Pernambuco sob o comando do capitão-mor Bernardo Vieira de Melo. Entrincheirados dentro de uma cerca redonda, com pouco mais de cinco quilômetros de extensão e guarnecida por fossos de estrepes, os guerreiros de Zumbi ainda conseguiram resistir durante duas semanas, mas acabaram sucumbindo ao fogo pesado dos atacantes. Houve centenas de mortos. Duzentos homens pereceram ao cair num precipício durante uma fuga desordenada na madrugada de 6 de fevereiro de 1694. Os demais fugiram para o mato sob o fogo e a perseguição dos luso-brasileiros. “Tantos eram os feridos que o sangue que iam derramando servia de guia às nossas tropas”, descreveu o governador Melo e Castro em carta ao rei de Portugal. Os soldados, segundo o testemunho de Jorge Velho, “degolaram aos que puderam”. A cidadela do Macaco foi incendiada e ardeu a noite toda. Ferido durante os combates, Zumbi sobreviveu e escondeu-se numa grota da serra Dois Irmãos, onde hoje situa-se o município alagoano de Viçosa. Quase dois anos mais tarde, seu esconderijo foi revelado, aparentemente sob tortura, por um dos quilombolas, o mulato Antônio Soares, aprisionado durante os combates no reduto do Macaco. No dia 20 de novembro de 1695, o herói e último defensor de Palmares foi finalmente encurralado e morto em uma emboscada organizada pelo capitão paulista André Furtado de Mendonça. Estava acompanhado de vinte guerreiros, dos quais apenas um se deixou capturar vivo. Decepada e salgada, a cabeça de Zumbi foi levada em triunfo para o Recife, onde ficou exposta no alto de um poste erguido no Pátio do Carmo para servir de exemplo a outros escravos rebeldes e potenciais fugitivos. Em carta despachada para o rei de Portugal no dia 14 de março de 1696, o governador Melo e Castro dava detalhes e explicações sobre o macabro espetáculo: Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares. Aniquilado e esquartejado o personagem real, outro Zumbi começava a emergir das sombras: o mítico guerreiro que até hoje instiga a imaginação dos estudiosos e serve de combustível nas lutas ideológicas brasileiras.

 Laurentino Gomes. Escravidão – Volume 1 (pp. 430-435). Buobooks. Edição do Kindle.


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